quarta-feira, 5 de setembro de 2012

John Cage: de segunda a um ano

Por André Dick

A única obra de John Cage traduzida no Brasil, De segunda a um ano (com tradução de Rogério Duprat, introdução e revisão de Augusto de Campos), reúne alguns dos seus caminhos mais percorridos. Nele, há o “Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores)”, que se estende pelo livro e por várias obras suas e reúne ideias colhidas ao acaso, sobre política, música, sociedade, entre outros temas, como fazia Thoreau, ídolo de Cage, em A desobediência civil. Há também o “Diário: seminário de música de Emma Lake”, em que Cage, ao comentar sobre suas peregrinações como compositor, ao mesmo tempo tece comentários sobre diversos tipos de comida em diversas regiões dos Estados Unidos; “Papo nº 1”, uma série de colagens de versos, palavras, pensamentos, colhidos, também, ao acaso total, com forte influência do Dadaísmo; o capítulo “Como passar, chutar, cair e correr”, com uma série de histórias de pessoas que cercavam a vida de Cage, principalmente, é claro, músicos (Christian Wolff, David Tudor, Stockhausen), explicando seus métodos de elaboração para as peças, realizadas sobre operações de acaso.


Há homenagens para outros artistas: “26 proposições sobre Duchamp” (já mencionado); “Miró na terceira pessoa: 8 proposições” (sobre o pintor espanhol), “Nam June Paik: um diário” (sobre o maior videomaker do planeta) etc. No campo específico da música, há muitos momentos: em “Daqui, para onde vamos?”, que aborda os sentidos dos sons; “Duas proposições sobre Ives” (poema com um trabalho tipográfico singular e as palavras interrompidas por sinais, como uma peça musical pelas notas); a “Conferência na Juilliard”, conferência em forma de poema, dividida em quatro seções. Apresentada na Juilliard School of Music, a convite dos alunos dela, Cage lembra, em De segunda a um ano, que enquanto falava o texto, seu amigo David Tudor tocava algumas peças de piano, composições de Morton Feldman, Christian Wolff e dele próprio. Eram usados cronômetros para coordenar o programa, feito por Tudor sem que Cage o conhecesse previamente. A primeira seção iniciou aos 0’0’’, a segunda aos 12’10’’, a terceira aos 24’20’’ e a quarta aos 36’30’’. Cage lembra que escreveu o texto em quatro colunas “para facilitar uma leitura rítmica e a medição dos silêncio”, lendo “cada linha da página da esquerda para a direita, não de cima pra baixo, seguindo as colunas”, para “evitar o resultado artificial que poderia decorrer do fato de seguir rigorosamente a posição das palavras na páginas”. Cage utiliza, como se refere na apresentação da conferência, “liberdades rítmicas que a gente usa ao falar na vida cotidiana”.


De segunda a um ano trabalha justamente com os brancos marcando o ritmo do texto entre as palavras como o espaçamento da página aproveitado por Mallarmé em seu Un coup de dés. Além disso, esses intervalos remetem ao próprio fato de Cage lidar com o pensamento como se fosse uma partitura musical, primeiro pensamento de Mallarmé, esclarecido no prefácio de sua obra, ao organizá-la de uma maneira que romperia os padrões vigentes. Da mesma forma, Cage utiliza, de forma competente, a noção de acaso de Mallarmé, porém em limite extremo – o acaso total, negado por Boulez em suas composições –, ao constituir seu poema sobre lances de pensamento que lidam com o pensamento em seu estado crítico, mas não procuram a “negação da negação”, ao contrário do poema de Mallarmé, que, sabendo ser impossível a abolição do acaso, tenta, ao menos, neutralizá-lo. Cage não busca isso: ele quer o acaso ilimitado.
Algumas passagens significativas, nesse sentido: “À medida que a gente caminha, quem sabe ? uma ideia pode ocorrer neste papo. Eu não tenho ideia se virá uma ideia, ou não. Se vier uma, legal. Considere-a como algo visto momentaneamente, como se fosse de uma janela [...]”. Ou “Isso explicará o que Feldman significa quando diz que está associando com todos os sons e assim pode prever o que irá acontecer, muito embora não tenha escrito entre as notas específicas, como fazem outros compositores”. Ou “Como é diferente esse sentido de forma daquele que está vinculado à memória, temas e temas secundários, sua luta, seu desenvolvimento, clímax, recapitulação, que é a crença de que a gente pode possuir sua própria casa mas, na verdade, ao contrário do caracol, a gente carrega a casa dentro da gente, o que nos capacita a voar, ou ficar, para apreciar tudo”. Como se vê, as primeiras aflições na poesia de John Cage emergem no fragmento do poema “Conferência na Juilliard”, referindo-se, sobretudo, à conversa cotidiana, à música e à comparação entre sons e memórias. Tendo como pano de fundo a função do discurso para uma plateia, John Cage lança suas palavras como notas musicais, entre os brancos da página, instigando o tema musical.


Cage prossegue o que Mallarmé antecipa no prefácio a Un coup de dés: “Tudo se passa, para resumir, em hipótese; evita-se o relato”, com o “emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos, fugas, ou seu desenho mesmo, resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura”, em que os brancos assumem um papel de muita importância como em Un coup de dés, na quebra, com hífen, de alguns vocábulos, na pontuação dispersa, no espaçamento crítico entre as palavras. Aproxima-se, assim, das “subdivisões prismáticas da Ideia” do poema de Mallarmé, em que uma imagem “aceita a sucessão de outras”, fazendo com que as palavras ganhem um movimento no espaço da página até então desconhecido, a página “servindo de unidade como alhures o Verso ou linha perfeita”. A pontuação ganha um destaque necessário na tradição aberta por Mallarmé, e os ruídos, que podem ser vistos pela pontuação dispersa, fazem parte da poética musical-literária de Cage. Uma história envolvendo o músico Christian Wolff, lembrada na seção “Como passar, chutar, cair e correr”, em De segunda a um ano, mostra bem isso:

Um dia as janelas estavam abertas, Christian Wolff tocava uma de suas peças ao piano. Ouviam-se sons de trânsito, buzinas de barcos, não só durante os silêncios da música : por serem mais fortes, era mais fácil ouvi-los do que os próprios sons do piano. Posteriormente, alguém pediu a Christian Wolff para tocar a peça de novo com as janelas fechadas. Christian Wolff disse que ele gostaria, mas que, realmente, não era necessário, já que os sons ambientais não eram de forma alguma uma interrupção da música.

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