sábado, 26 de maio de 2012

A dispersão poética em Roland Barthes

Por André Dick

Se o leitor quiser conhecer um apanhado de vários momentos da trajetória de Roland Barthes, há O rumor da língua, com textos de 1964 a 1980, nos quais se percebe a ligação entre áreas de conhecimento a princípio inconciliáveis, mas que se complementam sobretudo em razão do olhar que é lançado sobre elas, falando, mesmo que restrito quase completamente ao campo francês (uma limitação de Barthes), da literatura de modo universal. De Proust a Robbe-Grillet, de Mallarmé a Valéry, de Goethe a Camus, Barthes desenha um painel consistente da literatura. No livro também se encontram textos bastante atuais sobre a ligação entre linguística e literatura, mostrando como as áreas podem caminhar juntas, afinal Barthes desejava constituir uma Semiologia Literária, que, como ele observava, serviria para deslocar as imagens que se tem da linguística e da literatura, colocando-as em constante mutação.


Além disso, é o seu livro que melhor apresenta a questão do estruturalismo e sua repercussão na literatura, sobretudo nas seções “Das linguagens” e “Da ciência à literatura”, ao mesmo tempo em que presta tributo, na seção “O amante dos signos”, a autores que foram definitivos para a semiologia que Barthes estudava, entre os quais Kristeva, Benveniste – decisivo, hoje, para se entender a filosofia de Giorgio Agamben – e Jakobson.
Se havia uma estrutura na obra de Barthes é que ele sempre foi contrário ao conceito aristotélico da verossimilhança, o que aparece várias vezes não só ao longo de O rumor da língua, mas também de A aventura semiológica, no qual faz um apanhado radical sobre a retórica, da aceitação que um autor muitas vezes quer ter da massa, ideia que vem primordialmente da Poética do filósofo grego. A isso, Barthes opta, nesses dois livros, pela “linguagem do imaginário” e parece compreender o essencial: a linguagem compõe tudo, inclusive o que se denomina “realidade” – esta sendo uma “mímesis da linguagem”. Como um complemento da mímesis sugerida por Aristóteles em sua Poética, Barthes propõe, influenciado por Lacan, a palavra imaginário, que em O neutro, como mencionado, trabalha nas obras de Valéry e Baudelaire.


Daí que, ao falar na morte do Autor (em O rumor da língua), destacando-se a maiúscula de Autoridade sobre o objeto que escreve, revela tanto a importância do leitor na resolução da obra quanto a valorização do imaginário de cada autor, que não vive sem a leitura, ou seja, sua obra também é fruto de outros livros. No meio literário, com sua predisposição a criar gênios românticos, ou tornar tudo reflexo imediato de uma realidade anterior, sem questionamento de linguagem, essa ideia costuma ser esquecida. Não se trata de extinguir o autor num texto, questão que Barthes reavalia em A preparação do romance II, mas de abrir o seu texto para as leituras que o antecederam e que o sucederão. Com isso, Barthes é um intelectual diferenciado por propor uma crítica literária sem a presença excessiva do Eu, estando preocupado com a dispersão do texto. Para ele, um texto não tem Autor – com a maiúscula idealizada. O autor é um selecionador de leituras, repropondo uma releitura, pelo desejo de escrever com a mesma paixão que sentiu naquele escrito que leu, e não um gênio atingido pela fagulha da inspiração. O “eu” isolado simboliza a repressão, é consequência do domínio retórico de uma voz sobre as demais. Mas o desaparecimento do eu não é a morte do sujeito, como ele vai se referir em “A morte do autor”: é mais uma constatação da multiplicidade de um eu, que, despedaçado, nunca remonta a sua origem, é sempre indefinido e múltiplo.


Um eu que já era trabalhado em O grau zero da escrita, em que a posição do escritor é a de viver um eterno conflito com a sociedade, mas sem tê-la como finalidade, como fica claro em Sade, Fourier, Loyola: “A intervenção social de um texto (…) não se mede nem pela popularidade da sua audiência, nem pela fidelidade do reflexo econômico-social que nele se inscreve ou que ele projeta para alguns sociólogos ávidos de recolhê-lo, mas antes pela violência que lhe permite exceder as leis que uma sociedade, uma ideologia, uma filosofia se dão para pôr-se de acordo consigo mesmas num belo movimento de inteligência histórica. Esse excesso tem nome: escritura”.
A verdade é que a passagem dessas teorias de Barthes, cultivadas durante a época mais fecunda do estruturalismo, para outros centros acabou prejudicando a recepção delas. São vistas com um olhar mais agônico pelo norte-americano Harold Bloom, o qual, em seu A angústia da influência, faz uma apropriação pela metade das ideias de Barthes. Sua apropriação é estranha, pois, ao mesmo tempo que parece aceitar o olhar de que o texto traz uma multiplicidade de “eus”, ele insiste na voz de um autor ser mais “forte” em relação a outro para constituir uma tradição estabelecida. Assim, é como se os escritores mais fracos fossem simplesmente aqueles que não conseguiram superar os mais fortes, e a escrita, a tentativa de um autor apenas superar o outro, quando ela representa, sobretudo em Barthes, uma tentativa de obter desse outro o “prazer do texto”. Em se tratando de autores “mais fortes”, embora Barthes esqueça de que não quer uma figura central em alguns momentos, ele escreve que desde Mallarmé nada foi criado na literatura francesa, e o simbolista francês é figura decisiva nas análises de Barthes, de O grau zero da escritura, passando por Fragmentos de um discurso amoroso (em que se analisa a paixão de Mallarmé pelo filho Anatole e mesmo o amor é visto como “um lance de dados”) até O neutro e A preparação do romance II. O diferencial é que Barthes não reduz as obras de cada autor a um diálogo consigo mesmas, elevando-as a um patamar superior; pelo contrário, ele procura espalhar o significado da criação.


Com interesse e bom humor, Barthes empreende, além disso, ao longo de sua obra, um combate contra a doxa, o poder dominante da retórica e da falsa instituição, paradoxal vindo de um autor que, afinal, foi, como dito no início deste artigo, professor universitário. Mas não um acadêmico no sentido de seguir regras preestabelecidas, burocráticas, típica de alguns que, parecendo ser contra o sistema, não percebem a fraqueza e o comprometimento do próprio discurso. Sua paixão pela literatura sobrepujava a retórica, o domínio do professor ou do escritor sobre a classe ou o leitor. Professor e aluno aprendem juntos, como se complementam o leitor e o autor (aprender junto, aqui, é conviver junto). Talvez seja em razão disso que, quando propõe que a morte do autor significa o nascimento do leitor Barthes é alvo de conservadores, pois dessa forma ele malha uma crítica específica, que costuma se julgar o ponto final da obra e se acha capaz apenas de iluminar a obra que analisa – e não se deixa iluminar, restringindo-se à sociologia, à historiografia, à estreita relação entre autor e obra, vinculados sem atrito. Barthes combate o isolacionismo, mas não desfaz sua teoria para agradar às massas e não foge de um dos seus temas prediletos, a paixão. Recorre a ela em Fragmentos de um discurso amoroso, no qual leva ao limite a mistura entre ensaio criativo, reflexão e, por vezes, narrativa, desta vez partindo de uma análise de Werther, de Goethe. As inusitadas observações de Barthes, cujo imaginário se estende de O banquete de Platão a Lacan, mostra um sujeito melancólico e moderno, e sua solidão supera a de Werther, porque se sabe, mesmo com o amor, inesgotável, ou seja, ao invés do suicídio do “herói” de Goethe, Barthes é mais incisivo: ao amor se permite a liberdade do imaginário. Levando-se em conta que esta obra tem 35 anos (foi lançada em 1977), ela surpreende por seu caráter contemporâneo. Não por acaso, Fragmentos é um de seus livros-síntese e seria um dos mais comentados em O grão da voz, volume póstumo com entrevistas do crítico francês, necessário pela visão que oferece do seu percurso, por meio de sua voz escrita, sobretudo a respeito de obras como S/Z, Sade, Fourier, Loyola e Sistema da moda.


Incidentes, por sua vez, é uma espécie de Fragmentos de um discurso amoroso mais pessoal. Mostra as jornadas de seu autor, que era homossexual, atrás de um amor, mesmo já se sentindo impossibilitado para vivê-lo. O livro é realista (ou, se seguirmos o que seu autor dizia num ensaio presente em O rumor da língua, é um “efeito de real”), numa mistura entre afeto negado e secura, revelando uma espécie de diário do autor para alguns encontros que revelam sua decepção e recolhimento da realidade, embora a parte inicial lembre mais os escritos de John Cage (que Barthes admirava e do qual lembra em obras como O óbvio e o obtuso). Lembre-se que ele também fez Diário de luto (com fragmentos sobre a morte de sua mãe, num tom ainda mais poético). Recolhimento de um autor que se sentia pleno somente no imaginário – ou assistindo a peças de teatro, como comprova o volume Escritos sobre o teatro.
O processo de sua escrita (o simbólico), em todos os livros, deixa clara a importância de construir uma linguagem utópica (seu tema em Sade, Fourier, Loyola, colocando, de um lado, um autor conhecido pela violência erótica, Sade e de outro, um religioso, Loyola). Barthes raramente é hermético, mesmo com seus  jogos de pensamento, nem costura demais a reflexão a ponto de deixar o leitor impaciente: tudo o que ele escreve parece solto, desestruturado, sendo, no entanto, coerente. É o “saber com sabor”, na análise de Leyla Perrone-Moisés, quando explica na introdução a O rumor da língua: “O saber de Barthes é a sua qualidade de escritor, sua capacidade de introduzir o estranhamento da fórmula artística (surpresa e prazer) no gênero ensaístico que ele pratica e renova: o jogo com os significantes, a polifonia de uma enunciação sutil que trança, em seu texto, várias faixas de onda: inteligência, erudição, ironia, humor, provocação, afeto. Sua sabedoria é o que constitui propriamente sua lição, já que o sabor do escritor pode ser desfrutado, mas nunca ensinado. A lição de Barthes não se apresenta de forma assertiva ou programática. Ela se reduz a algumas propostas básicas que atravessam todas as fases de sua obra, variando na formulação mas mantendo-se firmes como posição assumida diante e dentro da linguagem”. É uma crítica para, além de lida, ser apreciada, como um bom poema ou um bom romance. Nesse sentido, é uma escritura – termo que infelizmente caiu em desuso, tanto que a tradução da Martins Fontes se chama O grau zero da escrita –, como ele escrevia para diferenciar um texto da escrita comum. Uma escritura que tem muito de teatral e de imaginário.


E, como todo professor, Barthes continua sendo combatido por alguns alunos, como Antoine Compagnon que, em O demônio da teoria (Ed. UFMG), parece realizar um tratado – de forma muito interessante, diga-se de passagem – contra suas ideias acerca da literatura. O mesmo Compagnon, aliás, já havia escrito, no texto “A obstinação de escrever”, em homenagem ao antigo professor: “Barthes era teimoso: não desistia antes de a escrita estar acabada, estar perfeita. Eis aquilo de que eu também tanto gostei nele”. E falaria novamente dele em detalhes no excelente (e contraditório) Os antimodernos (Ed. UFMG). Compagnon, em O demônio da teoria, faz cada um dos ataques com um brilho parecido àquele do antigo professor, mas esbarra num detalhe: quando tenta combater algumas ideias de Barthes que julga superficiais, valorizando as de Aristóteles, ele acerta tornando o pensamento do amigo francês comparável ao do filósofo grego. Em linhas menos generosas, defende o mestre, mesmo ao falar que ele erra. Pois, como disse Barthes, certa vez, lembrando Valéry, sem receio: “Eu decepciono”. É talvez um lugar-comum na trajetória de quem também dizia: “A palavra ‘obra’ já é imaginária”. Imaginária ou decepcionante para quem espera a perfeição, sua obra é indispensável aos apreciadores de uma teoria da literatura que, ao sistema, prefere a criatividade.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O significante poético de Roland Barthes

Por André Dick

Certa vez, numa entrevista, Haroldo de Campos disse que a obra de Roland Barthes (1915-1980) se caracterizava por ser “singular, personalíssima, dificilmente transmissível hereditariamente a discípulos”. Poucos intelectuais, como este francês, também tiveram uma vida tão conturbada. Depois da morte do pai, quando tinha 11 meses de vida, Barthes, ao lado de sua mãe, atravessou uma infância relativamente pobre. Em razão da tuberculose, que passaria a enfrentar em 1934, ficou recluso num sanatório em períodos diferentes – afastado da “vida real”, o que ganharia contornos em sua obra –, onde leu a maior parte dos autores que o influenciaram (como Sartre, Brecht e Michelet).


Nos intervalos de suas internações, teve experiências como professor. Depois de superar a doença nos anos 1940, foi trabalhar como leitor na Universidade de Alexandria, no Egito, quando já se desenhava o crítico que lançaria em sequência alguns títulos, como O grau zero da escritura e Crítica e verdade, que criaram desconforto na intelectualidade francesa acadêmica e conservadora. A polêmica não o afastou do campo do ensino: Barthes foi um dos teorizadores da semiologia (lançou, inclusive, o libello didático Elementos de semiologia, influenciado por Saussure e Peirce), ao mesmo tempo em que ingressava no mundo universitário, na École Pratique des Hautes Études.
Atingiu o ponto mais alto, como professor e intelectual francês, ao ser nomeado para o Collège de France, em 1976, para a Cátedra de Semiologia Literária.
Já antes desse cargo, porém, Barthes navegava por outros campos e num livro como O prazer do texto tentava utilizar uma visão pós-estruturalista, aplicando a teoria à leitura das obras. Além disso, havia lançado a “autobiografia” fragmentada (e romanceada) Roland Barthes por Roland Barthes e se prepararia para lançar Fragmentos de um discurso amoroso, seu inesperado best-seller e talvez seu livro mais conhecido, sem nenhuma ligação com a teoria cientificista que imaginou ser importante na época do auge da Semiologia.


Seu caráter múltiplo, porém, não se restringe a esses livros. Guardava interesse pela fotografia (em A câmara clara), pela música (em O óbvio e o obtuso, livro póstumo com reunião de diversos artigos), pela desconstrução da narrativa (em S/Z, bastante influenciado pelas teorias de Derrida e de Julia Kristeva), pela interferência dos signos em nossa percepção cotidiana (em Mitologias, O império dos signos e Sistema da moda), pela mudança no direcionamento crítico (Sobre Racine) etc., sem cair no puro sociologismo histórico, mas criticando esses elementos, como se lidasse com textos literários. Tal posicionamento mostrava um autor demasiadamente múltiplo para a teoria ou para a crítica literária. Contudo, por outro lado, Barthes, por meio desses outros campos de linguagem, enriquece o que pensamos ainda existir: a literatura, que ainda faz dele um destaque nos dias atuais – já longe de 1980, quando faleceu com uma parada respiratória enquanto estava internado devido a um atropelamento.
Para revivê-lo, o caminho agora é encontrá-lo nas livrarias. Daí a importância da coleção Roland Barthes, coordenada por Leyla Perrone-Moisés para a editora Martins Fontes, que está trazendo a reedição ou a primeira edição de seus livros. Comecemos dando um breve apanhado de quatro deles que contêm ensaios inéditos: o primeiro de teoria, o segundo de crítica, o terceiro sobre o sistema e a moda, e o quarto sobre política.


O volume recente de inéditos de Teoria recupera um Barthes em mudança. São textos com o sentido de esclarecer o processo no qual se dá a escritura, fazendo ligação entre culturas díspares, contra o monolinguismo e investigando o estruturalismo, a cultura de massa, além da paixão pelo escrever. Destacam-se a carta de Barthes sobre Derrida (em poucas linhas, Barthes sintetiza a obra desse filósofo, morto em 2004) e uma recuperação da história da escrita, além do ensaio basilar (originalmente, um verbete) sobre o “Texto”. Já nos inéditos de Crítica, encontram-se duas investigações sobre O estrangeiro, de Albert Camus, o ensaio “Masculino, feminino, neutro”, que deu origem a S/Z, e o belo “Mesas-redondas”. De modo geral, os ensaios que formam esse volume parecem enfeixar uma ligação direta com Ensaios críticos e Novos ensaios críticos, na forma e na modulação de tom. O volume sobre Imagem e moda recupera o ensaísta de Sistema da moda (possivelmente seu livro mais cansativo e com um estruturalismo mais ortodoxo), mas apresenta textos inéditos, mais interessantes, sobre o tema. No volume sobre Política, veremos textos com viés mais variado, entre eles uma análise a respeito de Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. Curiosa é uma resenha de Barthes sobre A peste, de Camus, que levou este a reclamar contra seu crítico, numa longa carta, e receber de volta uma resposta curta e arrogante. Importantes, igualmente, são os escritos sobre a China, a utopia, o marxismo, a violência, o antissemitismo, os hippies, além de suas entrevistas, permeadas de bom humor. Com textos mais do início da trajetória de Barthes, mostra que o universo político foi rejeitado mais tarde pelo escritor porque envolve um certo “discurso de verdade: discursos de arrogância, discursos de militância, discursos de autoridade e de certezas”, como escreve Leyla Perrone na introdução de O rumor da língua. 


Tais inéditos juntam-se à publicação de seus cursos e seminários O neutro, Como viver junto, A preparação do romance I e A preparação do romance II, organizados a partir de fichas do autor com anotações feitas para as aulas dadas no Collège de France – todos os livros se organizam, por isso, em dias de aula. Apesar de proporcionarem uma leitura mais difícil, pois elíptica, esses livros agradam pela velocidade do pensamento de Barthes. Neles, há uma precisão analógica, feita de idas e vindas, que revela uma delicadeza poética no tratamento com as ideias, como se fossem criando uma interação com a classe (a qual o leitor substitui, no caso, mesmo que sem a voz de Barthes, que vem em CDs apenas na edição francesa do livro). Embora o significado escape, o significante poético permanece, o que não é paradoxal em se tratando da escrita de Barthes. Nesses seminários, como nos últimos livros do escritor (Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso), fica melhor esclarecida essa ligação do escritor francês com a humanidade e com o afeto pelo outro. Como escreveu José Guilherme Merquior, num longo ensaio dedicado a Barthes em De Praga a Paris, o francês teve um “papel crucial no movimento (estruturalista)”, sendo uma espécie de “oficial de ligação entre o estruturalismo e o existencialismo”.


Numa escala comparativa, O neutro recupera ideias de O grau zero da escrita, no sentido de trabalhar um painel sobre a escritura que busca um ponto de conciliação entre rumos diferentes, nunca escolhendo nenhum deles. O neutro é uma figura de reflexão para Barthes: um neutro via Sartre e Blanchot, que serviria de mote para Derrida, não por coincidência um leitor de Barthes. Existe no neutro uma crítica ao fato de o indivíduo, em seu comportamento social, precisar, não raramente, tomar posição. Ou se mostrar sempre disposto, o que Barthes contesta, referindo-se, nas entrelinhas, ao luto que guardava, na época, pela morte da mãe (o que iria recuperar nos biografemas de Diário de luto, obra póstuma e também incorporada recentemente à coleção dedicada a ele pela Martins Fontes). A crítica contida em seu conceito guarda laços de parentesco com a cultura oriental, sobretudo com o zen, ao qual o autor recorre em alguns momentos. Para Barthes, o crítico, por exemplo, não tem nenhuma obrigação de tomar partido, muito menos de comentar uma obra se ele não quiser. Ao mesmo tempo, ele contesta a ideia de que ser neutro é um sinal de fraqueza, o que remete à desconstrução de Derrida, que optava pela diferença – a conciliação entre extremos, contra o logocentrismo do pensamento. Nesse sentido, um dos momentos mais interessantes de O neutro é aquele em que Barthes fala da questão do imaginário, recorrendo aos casos de Valéry, Baudelaire e Mallarmé. O imaginário, usado no sentido lacaniano, é entendido por Barthes como uma espécie de “lugar” onde se distendem todas as impressões e leituras do autor, que assume várias máscaras.


Como viver junto recupera ideias de Fragmentos de um discurso amoroso, mas sob um viés mais concentrado em relacionamentos culturais, de como o ser humano se adapta a cada meio, a cada convivência, e não investigando tanto o campo amoroso (analisa até Robinson Crusoe, de Daniel Defoe), embora recorra a ele em alguns momentos. Estuda mais o comportamento social que o indivíduo pode revelar (seja sozinho, seja numa comunidade): a maneira como organiza seu quarto, como se alimenta, como lida com determinados sentimentos (desejo, melancolia, morte), analisando tudo como linguagem. Há um certo ar da sistematização que Barthes faz do universo da moda, mas sem o mesmo viés estruturalista cientificista, que era e é difícil de suportar, armadilha na qual ele caiu poucas vezes (em alguns momentos de S/Z e Sistema da moda, por exemplo).
Essa valorização da linguagem se amplia em A preparação do romance I e II, que enfocam o processo que o escritor enfrenta para compor sua obra. Se o primeiro livro é mais dedicado ao haicai, o segundo mostra uma inclinação para o universo poético da modernidade, tendo em mira os poetas Dante, Rimbaud e Mallarmé. Mas, para contar também o processo de criação, acaba passando, com atenção, por Proust e Kafka. É, possivelmente, o que de melhor escreveu Barthes sobre a poesia. Além de recuperar a desistência poética de Rimbaud, o crítico francês trata do Livro sonhado por Mallarmé e faz comentários sobre Vita nova, de Dante. A dicção utilizada nessas explicações, ao mesmo tempo tão orais e tão poéticas, mostra uma apropriação inteligente, por parte de Barthes, do que Jacques Scherer e outros escreveram sobre o projeto irrealizado de Mallarmé. O livro, no entanto, vai além: é impressionante como Barthes costura os elementos pelos quais passa o escritor (sua vida em comunidade ou em solidão, seu desejo de escrever, a relação entre a obra e o mundo). A preparação do romance II traz também o curioso seminário “Proust e a fotografia”, dedicado a analisar fotografias que Nadar tirou de escritores e outras personalidades.


Esses inéditos e seminários se juntam, na coleção, a outros livros já conhecidos: O grau zero da escrita (embora se preferisse escritura), A aventura semiológica (que faz parte da Coleção Tópicos, também da Martins Fontes), Fragmentos de um discurso amoroso, Sade, Fourier, Loyola, O rumor da língua, O grão da voz (livro de entrevistas) e Incidentes, entre outros.