quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A vanguarda primitiva de Oswald de Andrade (I)

Por André Dick

A Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade era a síntese do contato de Oswald tanto com a vanguarda europeia quanto com Blaise Cendrars, poeta francês, grande amigo seu. Mas não apena isso. Como analisa Benedito Nunes, na obra A utopia antropofágica, “o ideal do Manifesto da Poesia Pau Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação ética do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, ‘o melhor de nossa tradição lírica’ com ‘o melhor de nossa construção moderna’”. É exatamente o que pretendia Oswald em seu texto “A crise da filosofia messiânica”, em que escrevia que a tese era o “homem natural”, a antítese o “homem civilizado” e a síntese o “homem natural tecnizado”.


Foi na primeira metade do ano de 1925 que Oswald aproveitou para rever e preparar a publicação do Pau Brasil, na França. Àquela altura, já estava plenamente acostumado com o universo parisiense. Universo que abrigou tantos outros gênios da poesia, como Rimbaud, Apollinaire, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e mestres da pintura, entre eles, Picasso, o mestre do Cubismo, apoiado por Apollinaire, criador dos Caligramas.
Acabou por lançar a obra naquele ano mesmo. Ao mesmo tempo que era lançado no Brasil, o livro de poemas era publicado, entre agosto e setembro, pela Editora Au Sans Pareil, por interferência de Cendrars e por um amigo deste, René Hilsum. No catálogo dessa editora, famosa em Paris, Oswald tinha gigantes da vanguarda ao seu lado, entre os quais Apollinaire, Max Jacob, Tristan Tzara, pertencente ao movimento dadaísta, e o próprio Cendrars.
O livro Pau Brasil acabou sendo dedicado “A Blaise Cendrars, por ocasião da descoberta do Brasil”, trazendo uma verdadeira revolução, como prometia seu manifesto, na arte de fazer poemas, desestruturando todas as normas sintáticas, constituindo-se numa espécie de divisor de águas no modernismo da poesia brasileira.


Maria Eugenia Boaventura observa muito bem as transformações empregadas por Oswald através dessa obra, em seu livro O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade, no seguinte trecho:

“Pau Brasil”, “iluminado” por Tarsila e anunciado como “cancioneiro” revolucionou também graficamente. Ilustrações e capa de Tarsila fizeram as vezes de uma coreografia, em parceria perfeita com a ingenuidade e o primitivismo da linguagem Pau Brasil. A ousadia do projeto gráfico, sobretudo, causou espanto e atuou como uma espécie de síntese plástica do livro.

No Rio de Janeiro, o livro de Oswald teve uma ótima acolhida, mas houve quem não gostasse das invenções e atrevimentos propostos pela poesia Pau Brasil. Os críticos mais ferrenhos eram, sem dúvida, Tristão de Athayde e Manuel Bandeira. O primeiro concluía o seguinte sobre o livro de Oswald:

O que pretendeu (...), o sr. Oswald de Andrade e o grupo de seus admiradores, é abolir todo o esforço poético no sentido da lógica da beleza da construção e nadar no instintivo, na bobagem, na mediocridade. Exaltar a vulgaridade. Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos cafés. Curvar o joelho diante de todos os prosaísmos. Voltar ao bárbaro ou deleitar-se no suburbano.

Por sua vez, Manuel Bandeira ironizou diversas vezes o nome do manifesto e do livro de Oswald, afirmando que não existia mais o Pau-Brasil em nossas terras. Afirmava mais sobre o livro de Oswald: “O seu primitivismo é apenas uma fórmula pindorâmica de um anseio europeu, cuja degeneração foi expressa no dadaísmo francês e no expressionismo alemão”.

 
Bandeira afirma que o programa de Oswald “é ser brasileiro”. E ainda atesta: “Aborreço os poetas que se lembram da nacionalidade quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça. Quero ser eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de falar ainda na Grécia”. Bandeira não entendeu a antropofagia que já se manifestava no Manifesto da Poesia Pau Brasil, ao afirmar que o manifesto oswaldiano era “nacionalista”. O mesmo quando afirma que Oswald se faz de futurista e, ao mesmo tempo, escreve, em Memórias sentimentais, “cartas, diálogos e discursos que são um decalque servil de uma realidade cotidianíssima”. E, com um ataque ferino, escreve: “O seu primitivismo consiste em plantar bananeiras e pôr de cócoras embaixo dois ou três negros tirados da Antologia do sr. Blaise Cendrars”. Naturalmente, a visão de Bandeira é muito redutora. Oswald traz o desejo de exportar poesia, como se pudéssemos prover quem é devorado, não no sentido de servirmos ao estrangeiro, mas buscando um diálogo aberto de culturas, nada mais antinacionalista.
Outros nomes, como Mário de Andrade e Paulo Prado, que assina o prefácio do livro, obviamente apoiaram. Alguns, como Carlos Drummond de Andrade, ficaram entre o elogio e a denúncia da pobreza de excessos, ou seja, a tentativa de Oswald realizar uma obra caracterizada não essencialmente pela técnica, mas pelo estilo sintético, cujo encadeamento dos poemas conta com cortes constantes nos versos.
No livro Pau Brasil, Oswald de Andrade está à procura de uma linguagem primitiva, buscada por todas as vanguardas do início do século XX. Daí, a necessidade de Oswald considerar, no Manifesto da Poesia Pau Brasil, que “a poesia está nos fatos”. Como observa Benedito Nunes, “o primitivismo correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o século XX, encurvando a sensibilidade moderna menos na direção da arte primitiva propriamente dita do que no rumo, por essa arte apontado, em decorrência do choque que a sua descoberta produziu na cultura europeia, do ‘pensamento selvagem’ - pensamento mito-poético, que participa da lógica do imaginário, e o que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado”.
Condicionado por essa linha de raciocínio, Oswald pende tanto para o primitivismo da natureza psicológica quanto para o primitivismo da forma, que Apollinaire explorou tão bem, em seus memoráveis Caligramas. Ao mesmo tempo, Oswald associa, nos poemas de sua obra, uma exaltação futurista da vida urbana, através do enfoque de grandes meios urbanos, às manifestações de uma nova lírica e de um espírito novo de poesia. Assim, a poesia Pau Brasil realiza uma espécie de “volta ao material”, que coincide com a volta a sentido puro e à inocência construtiva da arte.


A poesia Pau Brasil, consequentemente, possui um estilo sintético como o do Cubismo. A invenção das formas marcam a sua inocência construtiva, materializando-se, como é sua pretensão, expressa no manifesto, “ágil e cândida”, na sua volta ao sentido puro de todas as artes, a uma pureza que está concentrada no fato de reduzir o poema uma condição mais material, onde se privilegia a síntese verbal e a melancolia. Essa melancolia, apurada por Oswald em seus poemas do Pau Brasil, mostra que o artista precisa, novamente recorrendo a preceitos do manifesto, aprender a ver com olhos livres. Isso fica claro no poema “3 de maio”, talvez o mais conhecido dessa obra de Oswald, onde o poeta busca uma aproximação da infância, com sensibilidade e apego:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

Ou em “Black-out”, incluído em Cântico dos cânticos para flauta e violão:

Girafas tripulantes
Em paraquedas
A mão do jaburu
Roda a mulher que chora
O leão dá trezentos mil rugidos
Por minuto
O tigre não é mais fera
Nem borboletas
Nem açucenas
A carne apenas
Das anêmonas

O discurso de Oswald se situa, como o de Agamben, num ponto que navega entre a infância e o que resta da infância no universo adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar, explorando como Benjamin, o universo infantil. O adulto, para Oswald e Agamben, perdeu a magia do rito, da magia, do profanável – sobretudo quando se entrega ao capitalismo (não devemos esquecer que Oswald era um marxista até determinada altura, mas depois, como outros grandes autores, tornou-se crítico de suas premissas). Saindo desse universo, parece restar o juízo final que Agamben enxerga nas fotografias ou na exploração da tragédia, como avalia em “O dia do juízo”: “A fotografia é para mim, de algum modo, o lugar do Juízo Universal; ela representa o mundo assim como aparece no último dia, no Dia da Cólera”; “Graças à objetiva fotográfica, o gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida interior; aquela atitude irrelevante, até mesmo boba, compendia e resume em si o sentido de toda uma existência”.
Toda essa remissão à infância é trabalhada com fôlego em Infância e história, em ensaios como “O país dos brinquedos” e “Fábula e história”; em ensaios como “Magia e felicidade”, “Genius” e “Os ajudantes”, de Profanações. Nesse sentido, Oswald, como Agamben, é um filósofo da infância, como se apresentou Benjamin em alguns de seus textos, a exemplo de “Livros infantis antigos e esquecidos”, “História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”, os quais o italiano explora e complementa. A infância, afinal, é o início da profanação da linguagem, ou seja, de sua descoberta, principalmente poética. Afinal, diz Agamben, “a linguagem é nossa voz, a nossa linguagem. Como agora falas, isto é a ética”. E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma existência. Por isso, não há como acompanhar a crítica de Tristão de Athayde, quando diz que, em Pau Brasil, Oswald quis “Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos cafés”.


O que se destaca em Oswald – como Agamben – é sua predileção por uma certa infância da linguagem, ideia extraída não só dos românticos e dos seus sucessores - Benjamin afirmava que o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua figura uma representação dessa infância a que Agamben se refere -, que coloca a vida como um jogo entre rito e linguagem. No último texto de Profanações, em que ganha relevo essa visualização benjaminiana, a profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben, pois, em Infância e história, ele já recorria a essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto. Essa permanência da infância é a mais clara presença da melancolia.
Assim, por meio dessa obra que visualiza a Poesia Pau Brasil destruiu, com talento, parte do academicismo dominante, mesmo após a Semana de Arte Moderna, por meio de um estilo imprevisível àquela época. Era uma poesia ao mesmo tempo primitiva, ácida e bem-humorada. Fazendo referências a outros textos e a situações da história do Brasil, indicava a existência clara de um poeta radical, em busca de uma linguagem adequada ao seu tempo – mas profundamente imbuída em recuperar o passado, na clareza e na objetividade seus maiores atributos. Uma poesia que, como Paulo Prado colocava no prefácio do livro de Oswald, “era obtida em comprimidos, em minutos”. Dividido em nove partes (“História do Brasil”, “Poemas da colonização”, “São Martinho”, “rp 1”, “Carnaval”, “Secretário dos Amantes”, “Postes da Light”, “Roteiro das Minas” e “Lóide brasileiro”), o livro de poemas Pau Brasil já inicia com um exemplo de poesia sintética, “Escapulário”:

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A poesia
De Cada dia
A vanguarda primitiva de Oswald de Andrade (II)

Por André Dick

Esta poesia, baseada numa linguagem primitiva – no sentido de originária, infantil –, busca nos fatos, como afirmava um dos tópicos do manifesto, a razão para a poesia – e os fatos eram, sobretudo, voltados ao passado. Na primeira parte de Pau Brasil, Oswald recorta momentos da história brasileira com uma dose peculiar de sátira. Nos poemas “A descoberta” e “As meninas da Gare”, por exemplo, o poeta brinca com trechos da “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha. Já em “Riquezas naturais”, Oswald brinca com a própria língua portuguesa arcaica, abolindo a sintaxe clássica e as vírgulas. Seu intuito, claro, é soar um “homem natural tecnizado”, como escreve em “A crise da filosofia messiânica”:

Muitos metaes pepinos romans e figos
De muitas castas
Cidras limões e laranjas
Uma infinidade
Muitas cannas daçucre
Infinito algodam
Também há muito paobrasil
Nestas capitanias


Inserido nesse primitivismo, estão todas as vanguardas e a velocidade do mundo moderno. A velocidade do poema, tão prestigiada pelo Futurismo de Marinetti, encontra respaldo no seguinte fragmento do poema “Versos de Dona Carrie”, cujo encadeamento, além de rápido, indica o crescimento urbano inevitável:

A neblina nos segue como um convidado
Mas há um clarão para as bandas de Loreto
Cafezais
Cidades
Que a Paulista recorta
Coroa colhe e esparrama em safras
A nova poesia anda em Godofredo
Que nos espera em Forde

Em “Poemas da colonização”, o poeta se volta para o interior, para o passado, melancolicamente, identificando a repetição dos ciclos, e recorta, baseado em imagens claras e buscando versos sintéticos, o universo, sobretudo, rural, cafeeiro, como fica claro no poema “A transação”, de “Poemas da colonização”:

O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros das pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café

Os versos finais merecem destaque: “Por terras imaginárias / Onde nasceria a lavoura verde do café” – ou seja, terras que passam a inexistir para o sujeito.


Oswald busca, paralelamente, visando novamente ao “homem natural tecnizado”, a imaginação cinematográfica do início do século XX, quando o cinema ainda era uma indústria em crescimento e, para muitos, uma incógnita. Oswald, em poemas como “O capoeira”, abaixo, utiliza uma colagem de versos quase cinematográfica:

- Qué apanhá, sordado?
- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada

A mesma característica se insere no poema “Walzertraum”, da seção “rp. 1”, cujo fragmento pode ser lido abaixo, onde o poeta busca uma colagem de versos como Tristan Tzara promovia sua técnica de recortar figuras para formar uma obra dadaísta:

Aqui dá arroz
Feijão batata
Leitão e patarata
Passam 18 trens por dia
Fora os extraordinários
E o trem leiteiro
Que leva leite para todos os bebês do Rio de Janeiro
Apitos antigos apitam
Sentimentalmente
Eu gosto dos santuários
Das viagens

Enquanto a parte “Secretário dos Amantes” brinca com a linguagem lírica romântica, a seção “Postes da Light” possui um poema em especial que brinca com a disposição gráfica das palavras e é especialmente radical no contexto da poesia daquela época, intitulado “A Europa curvou-se ante o Brasil”, cujo encadeamento de versos é feito com resultados de partidas de futebol e, ao final, tenta vingar-se de Portugal indiretamente. No entanto, a maneira como Oswald inscreve o poema é infantil, lembrando marcações num diário.

7 a 2
3 a 1
A injustiça de Cette
4 x 0
2 x 1
2 x 0
3 x 1
E meia dúzia na cabeça dos portugueses

Por isso, também, a melancolia oswaldiana está ligada àquela infância de que trata Agamben em Infância e história.


Em seu estudo sobre Oswald, “Marco zero de Andrade” (de Contracomunicação), Décio Pignatari dá pistas para compreender Oswald. Para ele, Oswald não tem, como Mário de Andrade e alguns outros, o objetivo de criar uma “língua brasileira”. Tem, sim, a necessidade de expor o “sentido puro mediante a inocência construtiva”. Seu processo criativo consistiria num “processo de seleção do já existente, no momento ou na memória. Recorte, colagem, montagem. Antiliterariamente. O processo documentário”, que pode ser ligado ao próprio dadaísmo.
Assinala que o selvagem (ou o índio), revelou a “visão de uma nova moral, não cristã, e de uma nova linguagem, direta, ideogrâmica” (Pignatari compara o movimento ao de Pound em relação a Confúcio), o que fez com que nunca quisesse utilizar da língua ou da literatura tupi “para efeitos estilísticos ou formais”. O tupi de Oswald, porém, conforme observa Benedito Nunes, no artigo “Do tabu ao totem”, “não era de nenhuma raça, e, sim, o primitivo irredento, a contraprova de de uma anti-história dentro da história – um membro da horda freudiana, um salto exemplar da ancestral nebulosa do ‘pensamento selvagem’, ser cultural à margem de uma sociedade a que pertencia e olhando-a distanciadamente, com o fulgor da estranheza crítica”.

Segundo Pignatari, Oswald, por se colocar contra a sociedade de uma maneira geral, mesmo sendo de origem burguesa, nunca conseguiu efetivar realmente uma carreira literária, fazendo com que muitos desconfiassem de que sua obra fosse amadora.


Não que Pignatari esteja certo, ao afirmar, por exemplo, que Mário de Andrade descartava o futurismo (do qual bebeu, de um modo ou de outro, em seu Pauliceia desvairada), mas foi Oswald que valorizou as artes visuais, o movimento cubista – seu romance Memórias sentimentais de João Miramar é um exemplo claro de tal influência – e, para salientar novamente, o dadaísmo, que esteve ligado diretamente à pop art norte-americana de Marcel Duchamp e seus ready-mades. Pignatari acerta ao afirmar que a poesia de Oswald é “a poesia da posse contra a propriedade”, com “versos que não eram versos”, pondo em crise o próprio verso, como Mallarmé: “Alguns poemas são simples transcriações de anúncios de época. Destacados do contexto, os textos adquirem novo conteúdo: de lugares-comuns se transformam em lugares incomuns”, captando um dos momentos altos do cenário de São Paulo. Ocorre uma desautomatização da linguagem, incentivada, aliás, pelos formalistas. Pignatari compara Sousândrade com Oswald. Ambos, para Pignatari, não ficaram esperando “pelo beneplácito dos deuses da cultura mundial para produzir obras originais, destinadas ao confronto e ao julgamento internacional”. Ou seja, cada um deles, a seu modo, “deglutiu o avião, anticolonialmente, e produziu, de fato, uma poesia de exportação”.
Oswald vislumbrava, como poucos poetas, o outro: “Só me interessa o que não é meu”, provocação a ponto de suscitar o primeiro lance de alteridade assumida de nossa literatura, mas nunca visto pelo ângulo da acusação de que não podemos cultivar nossa literatura a partir de outra em razão de que estaríamos aceitando nossa condição de “subdesenvolvidos”, ignorada por Octavio Paz, mas apoiada por alguns críticos brasileiros.


Oswald já realizava o que Paz afirma no ensaio “Os signos em rotação”: “A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade” (“outridade”, vale assinalar, é um termo que se espalha ao longo de O arco e a lira, sempre sob o mesmo ângulo da alteridade, que é quando o “homem se realiza ou se completa quando se torna outro”, quando “a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser o que somos, e que, sem deixarmos de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte”, no momento tanto da leitura quanto da escritura, dominado pela sensação de transcendência crítica e pensada). Benedito destaca, no artigo “Do tabu ao totem”, que “Quando nos mírassemos no espelho do estrangeiro, passaríamos a estranhar-nos e a descobrir nossa originalidade nativa”, convertendo-se a assimilação “numa atitude devoradora generalizada”, comeríamos “nossa herança cultural ambígua com suas reservas inconscientes de imaginário, poeticamente transladáveis, e também com seu imenso poder repressor, que aliou a catequese aos Governos Gerais”. Com todos esses exemplos e revisão histórica, nunca é demais lembrar que Oswald de Andrade, antes de ser modernista, é um poeta contemporâneo, sintonizado com o mundo atual no que ele tem de procura por uma ética da linguagem, um dos responsáveis diretos pela existência atual de uma poesia brasileira voltada para um lirismo comedido e calculadamente triste, do qual já tratamos em “A melancolia antropófaga de Oswald”.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A floresta íngreme de Georg Trakl (I)

Por Nicole Cristofalo e André Dick

Nascido em 1887, em Salzburgo, e desaparecido em 1914, na Cracóvia, Georg Trakl é considerado um dos mais importantes poetas expressionistas – figura certamente ao lado de August Stramm. Em A verdade da poesia, Michael Hamburger afirma que Trakl não “foi deliberadamente um poeta modernista nem experimental como seu contemporâneo mais velho, August Stramm”. Em Poesia expressionista alemã, Cláudia Cavalcanti considera que a poesia dele “não é programática, revolucionária ou engajada; é antes uma poesia de lamento, elegíaca”. No entanto, é ainda, da floresta íngreme alemã, o poeta mais representativo.


Na sua coletânea publicada no Brasil pela editora Iluminuras, De profundis, a tradutora Cláudia Cavalcanti comenta, no posfácio (“Emergir das profundezas de G.T.: uma tentativa”), que ele “nascera no seio de uma família abastada e protestante, na provinciana e católica Salzburgo”, sendo “o quarto de seis irmãos”. A morte de seu pai, um mês antes de se formar como farmacêutico, em Viena, 1910, “foi um grande choque para aquele cuja mãe sempre fizera questão de se manter afastada dos filhos [...], além de ter significado um abalo na estrutura financeira da família”. Mesmo antes, salienta Cavalcanti, Trakl já “enveredara por uma vida boêmia, voltada para o álcool e as prostitutas, mas sobretudo para as drogas, que conseguira pela primeira vez através de um amigo, filho de farmacêutico e depois, evidentemente, graças às facilidades que lhe proporcionavam a profissão”. Mas sempre, acima de tudo, manteve uma relação conturbada com a irmã, Grete, a quem dedicou diversos poemas.
O poeta teve grande proximidade de Ludwig Wittgenstein. André Vallias transcreve sete dias consecutivos do Diário Secreto, que Wittgenstein escreveu de 1914 a 1916, no texto “Canto dum melro em cativeiro”, dedicado ao poeta, na revista Cacto (nº 4), assim como poemas e cartas de Trakl(citados ao longo desse texto). Essas anotações, conforme Vallias, “dão conta da intensa e torturada reflexão existencial que acompanha a gestação do Tractatus Logico-Philosophicus”.


Como conta Vallias, Wittgenstein, que herdara uma fortuna, escreveu ao editor da revista Der Brenner, Ludwig von Ficker, afirmando que gostaria de depositar em sua conta 100.000 coroas e pedindo que as distribuísse entre “artistas austríacos necessitados”. Um dos agraciados foi justamente Trakl. No entanto, prossegue Vallias, a quantidade depositada em sua conta não alterou o curso de sua história: “Quando a guerra finalmente eclode, em agosto de 1914, Trakl se alista como voluntário. Wittgstein fará o mesmo”.
Para Vallias, ambos estavam mais próximos do que se imaginava: compartilhavam admiração por autores como Dostoiévski e Tolstói, além da “mesma exasperação pela pureza da linguagem e do caráter; a dificuldade de comunicação com seus iguais; o desprezo pelas convenções sociais; e o tormento dos escrúpulos morais”.
Prossegue Vallias:

No início de outubro, Georg Trakl será encaminhado ao Hospital de Guarnição, em Cracóvia. Extremamente deprimido, tentara se matar no front, após vivenciar, mais próximo do que podia suportar, os horrores da guerra. Como farmacêutico, fora destacado para cuidar sozinho de um grupo de 90 soldados gravemente feridos, largados num paiol. Do lado de fora, pendiam dezenas de camponeses rutenos, enforcados pelo exército austríaco, acusados de colaboração com os russos.
Em 25 de outubro, Ludwig von Ficker visita o poeta no hospital e informa-lhe que Wittgenstein encontrava-se não muito distante. O filósofo servia num navio de guerra que subia o rio Danúbio, em direção a Cracóvia.

Esses 90 feridos eram da batalha de Grodek, na Galícia. Trakl fez um poema, aliás, intitulado “Grodek” (vejamos na tradução de André Vallias), no qual vislumbra a irmã, Grete, em determinado verso, mas sobretudo o horror da guerra:

À tarde soam as matas de outono
De armas mortais, as planícies douradas
E lagos azuis, por onde o sol
Rola sombrio; a noite ronda guerreiros
Em agonia, o clamor feroz
De suas bocas destroçadas.
Porém mudas, no chão do pasto, juntam
As nuvens vermelhas, onde um deus em fúria
Mora no sangue vertido, o frio lunar;
Todas as estradas desembocam em negra podridão.
Sob os ramos dourados da noite e sob estrelas
Oscila a sombra da irmã por entre o silente arvoredo,
A saudar o espírito dos heróis, as frontes sangrando;
E suave soam no junco as flautas escuras do outono.
Ó tão altivo luto! altares brônzeos,
À ardente chama do espírito hoje alimenta uma dor atroz:
Os netos não nascidos.


Trakl escreveria a Wittgenstein, de Cracóvia, em 26 ou 27 de outubro de 1914:

Prezado Senhor!
Ser-lhe-ia imensamente grato se me concedesse a honra de uma visita. Estou temporariamente, há 14 dias, no enorme Hospital de Guarnição, no quinto setor de doentes psíquicos e nervosos. É provável que receba alta nos próximos dias, par retornar ao campo de batalha. Enquanto não se decide a respeito, gostaria muito de lhe falar.
Com as melhores saudações, seu devotado Georg Trakl.

É por meio do Diário Secreto de Wittgenstein que percebemos sua admiração por Trakl. No dia 5 de novembro de 1914, ele escreve:

Seguindo cedo para Cracóvia, aonde deveremos chegar no meio da noite. Estou muito ansioso para saber se irei encontrar-me com Trakl. Espero muito. Sinto muito a falta de alguém com quem possa conversar um pouco.

Já no dia seguinte, escreve:

Cedo à cidade, rumo ao Hospital de Guarnição. Lá, fui informado de que Trakl morrera há poucos dias. Fiquei muito abalado. Que tristeza, que tristeza!!!

Trakl havia morrido de overdose de cocaína. Dele, Wittgenstein diria: “Não entendo a poesia de Trakl, mas me deslumbra, e não há nada que me dê melhor a ideia de gênio”.


Em 24 de outubro de 1914, Trakl havia escrito numa carta a Ludwig von Ficker:

Caríssimo e prezado amigo!
Aqui seguem os manuscritos dos dois poemas que lhe havia prometido. Desde sua visita ao hospital, meu estado tornou-se duplamente infeliz. Já me sinto quase fora do mundo.
Por último, gostaria de acrescentar que, em caso de meu falecimento, é meu desejo e vontade que tudo o que tenho de dinheiro e demais pertences sejam destinados à minha querida irmã Grete. Caro amigo, receba o abraço apertado de seu

Georg Trakl

Sebastião Uchoa Leite fez o poema “Ludwig im Traum” (de A espreita), tratando de Trakl e Wittgenstein com um tom de histórias em quadrinhos, como outros textos seus:

Wittgenstein não entendia
Os poemas de Trakl
Provavelmente
Georg entenderia
Ainda menos
Os filosofemas de Ludwig
Ainda assim
Ludwig financiou-o
Não é o amor que move o Sol
Muito menos as estrelas
O filósofo sabia mas
O saber
Preferia calar
A floresta íngreme de Georg Trakl (II)

Por Nicole Cristofalo e André Dick

É notável a melancolia de Trakl em suas cartas e seus poemas (um intitula-se, apropriadamente, “A melancolia”), direcionada, sobretudo, à irmã, a exemplo, também, de “Resto” (na tradução de André Vallias):

Ó rever-se em êxtase
No outono tardio.
Rosas amarelas
Desfolham no gradil,
Em lágrima escura
Uma grande dor se dissolveu,
Ó irmã,
Tão calmo finda o dourado dia.


Ou em “À irmã” (na tradução de Cláudia Cavalcanti):

Para onde vais será outono e tarde,
Veado azul que sob árvores soa,
Solitário lago na tarde.

Baixo o voo dos pássaros soa,
Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,
Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.
Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,
Na tua fronte, os arcos.

Também em “Calma e silêncio” (na tradução de Cavalcanti), no dístico final: “Um rapaz radiante / Surge a irmã em outono e negra decomposição”. A irmã de Trakl, apesar de casada, correspondia a problemática relação incestuosa, também dependia de narcóticos (conforme lembra Cavalcanti) e acabou se suicidando também em 1917, aos 25 anos.
Em Estâncias, Giorgio Agamben tenta desenhar – no que remete novamente a Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco alemão – o panorama da melancolia. Para isso, parte de um clássico texto de Freud, “Luto e melancolia”. Nesse ensaio referencial, Freud observa – e algumas ideias são recuperadas por Agamben – que, para algumas pessoas, o luto se dá como reação à perda de alguém querido ou de algum objeto (um livro esquecido na infância, um lugar não mais visitado), ou de alguma abstração (como o “país”, a “liberdade” ou o “ideal de alguém”), e a melancolia age às vezes em razão dos mesmos fatores, com a diferença de que se torna sintomática, da qual o sujeito tem dificuldades de se livrar, vivendo-a continuamente. Porém, Freud se pergunta por que às vezes o sujeito consegue superar a perda de alguém que lhe é estimado, mas nunca consegue se livrar de um sentimento de melancolia. É que, para Freud, o objeto perdido é como um sentimento recalcado, dando-se no inconsciente no sujeito e recaindo sobre o ego, pois a “apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido” e, se a libido é abalada, a perda do objeto se transforma na perda do próprio ego, lembrando-se, aqui, que, nas categorias de Lacan, o Imaginário tem muitos elementos daquele.


Em Trakl, o sentimento é de perda completa: não só da estrutura familiar ausente, como também diante desse amor incestuoso. Portanto, ele convive com a melancolia continuamente. Por isso, escreve em “Olhando um velho álbum” (na tradução de Cláudia Cavalcanti):

Sempre voltas, melancolia,
Mansidão da alma solitária.

[...]

Arrepiada sob estrelas de outono,
A cabeça mais baixa a cada ano.

A impressão é que, com essa melancolia, Trakl não se liberta das imagens da infância, nem da floresta que a circunda, como em “Vento quente (na tradução de Cavalcanti): “Profundo o vento em árvores destruídas, / E a figura de lamento da mãe / Vagueia pela floresta solitária” e “O sono”: “Este jardim estranhíssimo / De árvores entardecentes” (na tradução de André Vallias). Temos o poema “Nascer” (na tradução de Vallias) como uma das melhores criações nesse sentido. Segue um fragmento:

Serrania: negruras, silêncio e neve.
Vermelha, da floresta desce a caça;
Ah, os olhares de limo da fera.

Calma materna; sob negros pinheiros
Abrem-se as mãos adormecidas.
Quando surge destruída a lua fria.

Ou como escreve em “Salmo”: “A praça da igreja está escura e
silenciosa, como nos dias de infância”; em “Proximidade da morte”:
“Oh, a tarde, que vai às sombras aldeias da infância. / O lago
sob os salgueiros / Enche-se de suspiros emprestados de melancolia”),
em traduções de Cavalcanti. A poesia de Trakl traz imagens sempre
de um sujeito solitário, mais interessado no crepúsculo do que
no nascer do sol e, por isso, propenso ao universo noturno e
ao gelo das paisagens.


Notável a maneira como Trakl desenvolve essa melancolia, colocando, ao mesmo tempo, cores em seus poemas, como em “Na primavera” (na tradução de Vallias):

Afundou suave, com o passo escuro, a neve;
À sombra da árvore
Pálpebras rosas elevam os amantes.

Segue sempre ao chamado escuro do barqueiro
Estrela e noite;
E os remos batem suave no compasso.

Ante o derrocado muro, floram em breve
As violetas,
Verdeja tão silente a têmpora do solitário.

Ou em “Canto dum melro em cativeiro”, dedicado a Ludwig von Ficker (na tradução de Vallias):

Sopro escuro nos ramos verdes.
Flores azuis circunscrevem o rosto
Do solitário, o passo dourado
Agonizando sob a oliveira.
Esvoaça a noite de asas inebriadas.
Humildade sangra tão suave,
Orvalho esvaindo em gotas de florido espinho.
Compaixão de braços radiantes
Abraça um coração que despedaça.


Em De profundis, são apresentados seus principais poemas, repletos de imagens intensamente expressionistas, calculando o uso das cores (como o azul, que Cláudia Cavalcanti investiga em seu posfácio, próximo ao de Mallarmé, pois significa melancolia e, muitas vezes, escuridão), como vemos no referencial “Sebastião no sonho” (do qual reproduzimos o trecho inicial, na tradução de Cavalcanti, destacando construções diretamente relacionadas a cores, o que não significa que toda a construção não seja pautada por aromas e intensidades):

A mãe teve a criança sob a lua branca,
À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,
Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro;
E silencioso
Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,

Discreto, na escuridão da janela; e velharias
Dos antepassados
Jaziam podres; amor e fantasia outonal.

Escuro o dia do ano, triste infância,
Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,
Quietude e semblante;
Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,
E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.

Ou quando pela mão fria da mãe
À tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;
Um frágil cadáver jazia inerte no escuro da câmara
E erguia sobre este as pálpebras geladas.

Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,
O sino ao longo do novembro da noite,
O silêncio do pai, dormindo ao descer a espiral crepuscular.

Paz da alma. Noite de inverno solitário,
As escuras sombras dos pastores no velho lago;
Criança na cabana de palha; quão discreta
Baixava o rosto em febre negra.

Noite sagrada.
Ou quando pela bruta mão do pai
Subi em silêncio o sinistro Monte Calvário
E em crepusculares nichos dos rochedos
A figura azul do Homem passava pela sua lenda,
E da ferida sob o coração corria o sangue purpúreo.
Oh, com que leveza erguia-se a cruz na alma sombria.

Amor; quando em recantos escuros derretia a neve,
Uma brisa azul aninhava-se alegre no velho sabugueiro,
Na abóbada de sombras da nogueira;
E à criança aparecia devagar um anjo rosado.

Alegria quando em quartos frios soava uma sonata noturna
Nas vigas de madeira marrom
Uma borboleta azul saía da crisálida prateada.

Oh, a proximidade da morte! Em muro de pedra
Inclinava-se uma cabeça amarela, a criança muda,
Quando naquele mês de março caía a lua.

Róseo sino de Páscoa na abóbada tumular da noite
E as vozes prateadas das estrelas
Fizeram descer da fronte do adormecido uma sombria loucura
[em calafrios.

Oh, tão silencioso um passeio pelo rio azul abaixo
Lembrando o esquecido, quando nos galhos verdes
O melro chamava ao ocaso um desconhecido.

Ou quando pela magra mão do ancião
Passava à noite ante o muro em ruínas da cidade
E aquele de casaco negro levava uma criança rosada,
E à sombra da nogueira aparecia o espírito do mal.

Tatear os verdes degraus do verão. Oh, tão silenciosa
Ruína do jardim no silêncio marrom do outono,
Odor e melancolia do velho sabugueiro,
Quando na sombra de São Sebastião expirava a voz prateada
[do anjo.



Por meio desse jogo de cores e sensações (o frio predomina; como em outros poemas, as sombras compõem o caminho pela floresta íngreme), Trakl é um expressionista simbolista, dialogando sobretudo com Rimbaud (como destaca Cavalcanti). Nesse sentido, Trakl é extremamente pictórico e dialoga tanto com os expressionistas mais luminosos quanto com os expressionistas mais obscuros. Vejamos, ao mesmo tempo, o belo “Verão” (na tradução de André Vallias):

À tarde cala-se o clamor
Do cuco na floresta.
Mais fundo verga o trigo,
Papoula vermelha.

Negra tempestade ameaça
Sobre a colina.
O antigo canto dos grilos
Agoniza no campo.

Não mais se agita a fronde
Da castanheira.
Pela escada espiralada
Farfalha teu vestido.

Silente fulge a vela
No quarto escuro;
Uma mão de prata
A apagou;

Calmaria, noite sem estrelas.
A exemplo do que afirma Michael Hamburger, em A verdade
da poesia:

Como figura literária, Trakl estava longe de ser cosmopolita ou metropolitano. Seu contato com os outros escritores, até mesmo os expressionistas alemães entre os quais os historiadores da literatura o incluem, era raro e marginal, embora sua leitura precoce de Rimbaud e de outros poetas franceses o tenha influenciado a forma de escrever. Se a poesia de Trakl se tornou internacionalmente acessível, de um modo como não sucedeu com os poemas de guerra característicos de Wilfred Owen, Isaac Rosenberg e Siegfried Sassoon, isso se deveu ao fato de sua modernidade derivar mais das tendências estilísticas comuns a muitas literaturas e movimentos diferentes do que de atitudes e experiências.


A poesia de Trakl mostra o recolhimento do próprio autor, por isso é tão representativa de sua vida e de sua morte. Nesse sentido, não parece acertado considerar, como Hamburger, que ela tenha derivado mais de tendências estilísticas (incluída aí o simbolismo) do que das próprias atitudes e experiências. Focalizando um universo que parece à parte, própria de um Imaginário que tenta escapar de qualquer realidade, ainda que com referências esparsas familiares e imagens atormentadas, vividas por Trakl, essa poesia está desiludida com a humanidade – no entanto, não desacredita na cura pessoal, que se faz pela linguagem. Trakl coloca o leitor em sua floresta íngreme particular, transformando sua vida em símbolos carregados de pressentimento de um universo pronto a ser visitado.
Sobre “Sebastião no sonho”, o poeta Rainer Maria Rilke escreveu, em carta a Ludwig von Ficker, em 15 de fevereiro de 1915 (em tradução de Cláudia Cavalcanti):

Nesse meio tempo, recebi o “Sebastião no sonho”, do qual muito já li: comovido, estupefato, cheio de pressentimentos e perplexidade; pois logo se entende que as circunstâncias desse soar ascendente e ressoar descendente foram irremediavelmente únicas, justamente como as que nascem do sonho. Tenho a sensação de que, mesmo para alguém próximo a Trakl, essas perspectivas e visões só aparecem como se através de vidros, como se excluído delas: pois a experiência de Trakl é como uma sucessão de reflexos e preenche todo o seu espaço, inacessível qual o espaço do espelho. (Quem poderá ter sido ele?)

Quem poderá ter sido Trakl?
Nesse sentido, o poema “De profundis” (na tradução de Cavalcanti) sintetiza a obra do poeta, pela construção exata de imagens, o uso de cores e os cenários vazios, cercados pela chuva, por um vento e um pôr do sol melancólico. Ao fim, a aproximação da figura divina e do bosque, sob estrelas – num pântano cheio de lixo – e os anjos cristalinos (que certamente influenciariam Rilke):

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom; ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.