domingo, 22 de maio de 2011

Desestrutura da lírica moderna: uma teoria contra Mallarmé (I)

Por André Dick

Na linha da obra Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich, temos Da poesia à prosa, de Alfonso Berardinelli, sobretudo seus ensaios “As muitas vozes da poesia moderna”, “Baudelaire em prosa”, “Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna” e “Quatro tipos de obscuridade”. Já numa primeira leitura, percebe-se que o crítico italiano não contesta a argumentação de Friedrich, observando apenas a ausência de alguns autores que não se inseririam naquela visão de poesia moderna. Ele também não afirma que a visão de Friedrich sobre Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé é incoerente, diante de seus pressupostos. Isso acontece, em primeiro plano, porque Berardinelli, ao invés de contestar a argumentação de Friedrich, concorda, mesmo que às vezes implicitamente, com ela.


Isso fica bastante claro quando fala de Mallarmé, com a mesma percepção de críticos como Marcel Raymond (que, aliás, Berardinelli destaca em determinada altura): a de que o poeta é um desumano, à procura do absoluto. Vejamos o que escreve Berardinelli:

A linguagem da busca pelo absoluto produz, em Mallarmé, um absoluto da linguagem, uma linguagem-fortaleza, linguagem-prisão, uma turris eburnea. A língua da poesia se especializa. Cria um antimundo. Funciona como uma máquina, procedendo a uma meticulosa abrasão de todo conceito, imagem e valor herdados. O ato poético passa a ser culto e apologia de si mesmo. Desses pressupostos nasce uma obscuridade que poderíamos definir de “sublime niilismo”.

E completa: “na escola de Mallarmé – ou seja, de Valéry até o hermetismo italiano, a poesia pura espanhola (Jorge Guillén, Pedro Salinas) e outros –, cada composição poética deve pôr em cena momentos extremos, ápices de negação e pureza, uma tensão ascética orientada para o cancelamento daquilo que é conhecido e dado”.
Chama a atenção o fato de a reflexão de Berardinelli ser parecida tanto com a de Friedrich quanto com a de Marcel Raymond (em De Baudelaire ao surrealismo): para ele, a poesia moderna representa o “cancelamento daquilo que é conhecido e dado”. Seu desinteresse em relação à psicanálise (de Freud e Lacan) ou à linguística (sobretudo de Jakobson e Benveniste) é visível, sobretudo quando considera que a linguagem é afastada do humano, como o quer Friedrich. Não por acaso, ele vai criticar a influência dessa poesia, que se dilata teoricamente a nomes como Barthes, Derrida e ao grupo Tel Quel. Esses nomes destacam, para Berardinelli, “a intensificação da engenharia formal, o alto grau de opacidade do medium linguístico, que remete apenas a si mesmo, produz objetos ou entidades textuais semanticamente esvaziadas, em que os princípios ativos da negação e da purificação devem demonstrar ter atingido até o âmago, radicalmente, sua obra de cancelamento do sujeito, do tema, do contexto e de qualquer função da linguagem que não seja, para dizer com Jakobson, a função poética, a autorreferência”.


Para Berardinelli, a linguagem – concentrando-se em si mesma, o que não acontece na função poética de Jakobson, nem é uma possibilidade, pois é corrente no dia a dia – implicaria o fato de a arte poética passar a ser uma “arte sem leitores, uma arte literária apenas para escritores”. Desse modo, a arte moderna – afirma Berardinelli – “se transforma em um jargão de puro especialismo estético, em que, por princípio e de acordo com princípios teóricos, não se pode falar de nada”, novamente ligando, como Friedrich, a linguagem à obscuridade.
Berardinelli afirma, ainda, que uma nova crítica tornou essa poesia moderna palatável para o público, que ficou “adestrado”, o que destaca no ensaio “Quatro tipos de obscuridade”. Adestrado, diga-se – e aqui esteja talvez seu argumento mais contestável -, quando sintetiza que “a linguagem poética continuou seu caminho de depuração anticomunicativa, progressivamente se enfraquecendo e esvaziando”, “como algo que escapa à discursividade, à emotividade e à representação”. A “estética formalista” – isto é, “anticomunicaticava”, que enfraquece o diálogo com o público – e as “vanguardas informais” permitiam qualquer coisa, menos “dizer alguma coisa”. Pode-se analisar o quanto o discurso de Berardinelli é reducionista, rotulando a poesia moderna como aquela que não traz discursividade, emotividade ou representação (no sentido de criar um vínculo com a realidade), nenhuma relação com o empírico e, portanto, privilegia o silêncio, o “cancelamento do sujeito”, do “tema” e do “contexto”, por meio da “negação” e “pureza” - considerações que costumam ser feitas por quem não aprecia a poesia moderna.


Para Berardinelli, o autor mais adequado à teoria de Jakobson é justamente Mallarmé, visto como responsável pela poesia ficar restrita a um clube. Do mesmo modo, Jakobson é responsável por conduzir sua função poética a uma ideia de “arte pela arte”. Logo ele que escreveu um ensaio sobre os poetas russos, por meio da figura de Maiakóvski, que Berardinelli afirma terem sido esquecidos pela lírica moderna de Friedrich. Parece, no entanto, que há uma ideia potencialmente romântica no cerne dessa contestação de Berardinelli: ele se preocupa, como Friedrich, com a receptividade pública, embora confunda ainda o poeta moderno com a figura do medium romântico. Berardinelli avalia que a poesia moderna vista por Friedrich tem o mesmo objetivo romântico – e realmente tem.
É natural, portanto, que Berardinelli faça a defesa do texto “Sobre a lírica e a sociedade”, de Adorno. Sua preocupação, como a de Friedrich, é com o poeta como representante da sociedade. Ele quer estabelecer um diálogo do poeta com o público, que teria sido anulado pelos poetas Mallarmé e Rimbaud. Incomoda ao autor de Da poesia à prosa a constatação eliotiana de “linguagem do monólogo”, em que a comunicação se torna secundária. Berardinelli teme o leitor como uma “espécie de duplo do autor, um indivíduo a par dos pressupostos necessários para decifrar até a mais cifrada das mensagens”. Isso porque vê que, na modernidade, “a linguagem poética sempre para aquém ou além da comunicação social predominante, rumo à utopia ou ao silêncio, à afasia ou ao idioleto”. Ao mesmo tempo, ele parece se ressentir, paradoxalmente, da “utopia de um controle absoluto do processo criativo e dos efeitos sobre o leitor”.


Por isso, Berardinelli pretende extinguir a presença do Simbolismo por outro motivo (que não o do domínio do acaso): “Simbolismo e hermetismo nascem da emigração dos poetas para as terras do mistério”. Trazendo Novalis e Coleridge como exemplos, Berardinelli revela o erro de equivalê-los, por exemplo, à modernidade de Mallarmé, cujo absoluto e sagrado incorre na intertextualidade. Mallarmé, por exemplo, não entra em um “reino do impoético” ou faz um “mergulho no ignoto”. Talvez ninguém melhor que Eliot para retomar o Eu Absoluto interessado por se inserir na sociedade e representar o Outro – ao contrário de Mallarmé. O principal empecilho do simbolismo é a dita fuga à sociedade – sociedade que é a base do romântico. Mallarmé e a poesia moderna passam longe da aceitação social. E também a crítica estruturalista e neoformalista atacada por Berardinelli, como a de Barthes, que contestava a figura do “Deus-Autor” em “A morte do autor” e cuja semiologia ortodoxa abandonou no início dos anos 1970, em obras como O império dos signos e O prazer do texto – sem esquecer dos seminários que orientou em seus últimos anos de vida, publicados no Brasil em A preparação do romance I e II, O neutro e Como viver junto, em que revia ideias da semiosis. Nesse sentido, ao mesmo tempo, muito mais interessante é a posição de Giorgio Agamben, filósofo italiano, que retoma ideias de Benveniste, Barthes, Jakobson e Foucault em obras como Infância e história e Profanações – um autêntico filósofo da literatura.
Por isso, a tendência de Beradinelli em valorizar o “Sobre lírica e sociedade”, de Adorno, no qual se baseiam muitos críticos que querem ver na poesia moderna uma tentativa explícita de diálogo com o público.


Este, no entanto, não é o elemento decisivo para se compreender a receptividade dada ou não à poesia moderna. Ao avaliar que Mallarmé faz um “sublime niilista”, concordando com a proposta de Friedrich – para quem a modernidade traria justamente um “sublime niilista”, ou seja, uma “transcendência vazia” –, Berardinelli avalia que a poesia moderna é composta por características que não a fundam. No momento em que cita poetas modernos que estabeleceriam sua poesia a partir da realidade, ele implicitamente considera que eles não estão no livro de Friedrich por se contraporem à lírica proposta pelo autor. Contraria, assim, o que Rimbaud e sobretudo Mallarmé apresentam em seus poemas.
Desestrutura da lírica moderna: uma teoria contra Mallarmé (II)

Por André Dick

O que deve ser colocado em questionamento, tanto na obra de Berardinelli quanto na obra de Friedrich, é sua tendência a continuar querendo falar da poesia de Mallarmé e de outros simbolistas como puramente hermética, que visa ao silêncio e o cancelamento do sujeito, resultando numa poesia obscura e numa fuga à realidade – como Antoine Compagnon já havia constatado em Os cinco paradoxos da modernidade. Não são os autores excluídos por Berardinelli os fundadores do que vemos como a estrutura inicial da modernidade, mas sim os poetas que Friedrich seleciona: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé. Friedrich está certo em identificar esses nomes como precursores do que, mais adiante, fariam Eliot, Pound, Apollinaire, William Carlos Williams e Rilke, por exemplo. O problema é que ele identifica características equivocadas e considera que Mallarmé e Rimbaud escreveram, conscientemente, um determinado tipo de modernidade.


Quando invoca a presença de Whitman entre os poetas esquecidos por Friedrich, Berardinelli faz uma ressalva: “[...] nele não encontramos abstração ou cerebralismo, nem culto da premeditação intelectualista nem impulso da linguagem em direção a uma transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto, do imediato, da experiência comum”. Esta afirmação revela claramente que Berardinelli concorda com o programa de Friedrich, sobretudo em relação aos poetas Rimbaud e Mallarmé: ele apenas faz a ressalva de que alguns poetas, como Whitman, não se encaixam no esquema de modernidade proposto por Friedrich.
Baudelaire, como ele recupera no previsível ensaio “Baudelaire em prosa” – que sugere uma releitura dos escritos de Walter Benjamin e de Maurice Blanchot, daí, a meu ver, ser injusta a avaliação de Berardinelli em relação a este último, visto como um “puro” –, teria, sim, os elementos apontados por Friedrich, mas também outros, que constituiriam a modernidade desejada por Berardinelli. No entanto, ele acaba contrapondo Baudelaire a Mallarmé sob a ótica mais superficial – a de Friedrich –, ao afirmar que o autor de Les fleurs du mal apresenta “temas autobiográficos e confessionais”, não indo “no sentido da depuração e da despersonalização”, pois não crê na “divinização do humano ou nos poderes órficos da palavra”. A questão seria: Rimbaud e Mallarmé teriam essas características? Se eles quiseram uma “despersonalização” para suas obras, como afirma parcela da crítica, não quer dizer que a tenham conseguido ou pretendido atingi-la: talvez não haja um verso escrito por Rimbaud e Mallarmé que não estejam igualmente repleto de referências biográficas, mesmo que de maneira mais indireta do que Baudelaire. Além disso, elementos biográficos não garantem a qualidade de um poema ou de obra - daí o impasse de Berardinelli.
Conforme o crítico, representando o exato oposto das obras desses poetas, “os excessos do estilo de Whitman não se devem a uma tendência aristocrática e solitária, a um desejo de obscuridade e de fuga no mistério ou a um desprezo pelos leitores”. Porém, Whitman, com todo seu domínio verbal, traz, sem dúvida, uma representação da tentativa de se divinizar o humano. Nem Mallarmé nem Rimbaud seriam capazes de escrever o que Whitman escreve no início de sua obra-prima Folhas de relva: “I CELEBRATE myself; / And what I assume you shall assume; / For every atom belonging to me, as good belongs to you”.


O crítico italiano também contesta a presença de Valéry nesse cânone de Estrutura da lírica moderna, vendo-o como contrário ao “entrelaçamento das linguagens, dos registros, dos tons, assim como a relação essencial entre ‘música da poesia’ e língua comum”. A pergunta que se pode fazer é se não há esses elementos nos textos teóricos e nos poemas de Mallarmé e Valéry. Ou a ligação desses autores com o pathos existencial da vida. Na obra de Mallarmé, por exemplo, temos uma referência construtiva à mitologia, ao contexto musical que se vivia na França, o diálogo com inúmeros autores e com a pintura. A própria distinção que Mallarmé teria feito entre “poesia bruta” e “poesia pura” não existe se formos diretamente aos textos do poeta. Lendo atentamente seus escritos, percebe-se que, para ele, havia ritmo em tudo, menos, ironicamente, em “cartazes publicitários”.
Em Infância e história, o filósofo italiano Giorgio Agamben, recuperando as ideias de Benveniste e Barthes, avalia que o ser humano é constituído pela linguagem. A mesma linguagem que Friedrich indica que ruma à obscuridade, a uma “transcendência vazia” – em diálogo com o sublime romântico.
A questão é que Mallarmé, Rimbaud e Baudelaire não passam à categoria do sublime por serem autores críticos, para os quais não existe uma natureza divina a ser expressa em palavras – e seus textos são resultados de um diálogo criativo com a tradição, não se configurando no vazio. Não existe, portanto, a busca por um absoluto romântico nesses autores. Em Mallarmé, por exemplo, o absoluto é textual. Ele não almeja um Livro Absoluto, pois sabe que sua poesia é resultado de uma construção linguística.


Nesse sentido, ao longo de todo Da poesia à prosa, Berardinelli crê na ideia de que o grande problema é mesmo Mallarmé (apesar de citá-lo, às vezes, em companhia de Rimbaud, como vimos ao longo deste artigo): “O desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimentos ‘despoticamente’ formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda possibilidade de determinação espaço-temporal, é obra sobretudo de poetas como Rimbaud e Mallarmé e de pintores como Cézanne”. Como aniquilar a possibilidade de determinação espaço-temporal numa obra? Berardinelli tenta responder analisando a figura da cidade em obras como as de Baudelaire, Apollinaire e Eliot, no melhor ensaio de seu livro, “Cidades visíveis na poesia moderna”, mas poderia ter investigado as imagens da cidade também em Mallarmé e Rimbaud, mesmo que, para ele, impliquem numa “abstratização” ou numa “invisibilidade”.
No entanto, a diferença elementar entre Berardinelli e Hugo Friedrich é que o primeiro é ainda mais injusto em relação a Mallarmé, e introduz provocações que não comportam um debate sério. É quando escreve, por exemplo: “Baudelaire não mete medo em ninguém (nem Marx também). O pobre Nietzsche é bastante solicitado. Quanto a Mallarmé, seus leitores efetivos são, naturalmente, tão raros que seria fácil contá-los nos dedos. Mas estudar e secionar suas poesias é mais fácil do que lê-las, e até mais divertido, de modo que ele nem pode lamentar-se quanto a cultores e bibliografia. Mallarmé é o autor ideal para seminários especializados”. Percebe-se, sem dúvida, uma ironia nessa proposição de Berardinelli. Também pode soar como um certo desrespeito que provém de um intelectual reconhecido. Desrespeito não só com Mallarmé, poeta infelizmente esquecido e ainda cercado de uma mitologia que o cerca de absolutismos, como a de Berardinelli, e o prende a “seminários especializados”, mas com a fortuna crítica de alto nível que ele possui (de autores que, para Berardinelli, talvez tenham mais se divertido do que lido sua poesia, como Maurice Blanchot, Augusto de Campos, Jean-Pierre Richard, Roland Barthes, Haroldo de Campos, Michel Foucault, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Octavio Paz etc.). São análises como essa de Berardinelli que mostram o equívoco de um certo pensamento bastante comprometido com um ataque subjacente a um universo literário que o desagrada – mas não é, por isso, menos importante. Desse modo, Da poesia à prosa traz as mesmas características que Berardinelli identifica na Estrutura da lírica moderna, de Friedrich: “o inegável fascínio da simplificação e da síntese”. Com o subtítulo implícito “Uma teoria contra Mallarmé”. O que ainda é pouco para tentarmos resolver os paradoxos da modernidade.