sexta-feira, 29 de abril de 2011

Apollinaire: poeta do amor e dos caligramas (I)

Por André Dick

O poeta Guillaume Apollinaire nasceu em Roma, Itália, numa família de polacos, em l880, quinze anos antes de os irmãos Lumière trazerem a público a arte cinematográfica. Seu nome completo: Guillaume-Albert-Wladimir-Alexandre-Apollinaire Kostrowitzsky. Seus pais: um oficial italiano, Francesco Flugi d’Aspermont, e uma aventureira polonesa, Angélica de Kostrowitzksy.
Após diversas jornadas, por cidades como as de Mônaco, Nice e Cannes, o destino de Apollinaire, no início do século XX, seria Paris, centro de toda a vanguarda europeia e influência direta na vida de muitos artistas.
Deixando de lado sua vida extraliterária agitada - seu amor por várias mulheres, além da suspeita de ter roubado estatuetas do Louvre e da sua participação no exército francês -, foi Apollinaire quem lançou um dos primeiros discursos de vanguarda em terras francesas, apostando todas suas fichas no cubismo de Picasso, cuja filosofia acabou levando para a literatura, influenciado pelos movimentos de vanguarda - entre os quais o dadaísmo e o futurismo.


Para Décio Pignatari, Apollinaire é um “poeta confluente e defluente”:

Confluem Mallarmé (ideografia) e Rimbaud (dessemantização); defluem muitos, a partir de Dada e o surrealismo, incluindo brasileiros de gerações literárias várias, como Mário de Andrade (Celso nihil estate varíola Gide memoriam), Vinícius de Moraes (Munevada glimou vestasudente), Oswald de Andrade (vários aspectos da personalidade e da obra, a mescla de realismo e lirismo elementarista), os concretos e neoconcretos [...].

Sintonizado no que acontecia e mudava ao seu redor (as invenções trazidas pelo cinema, as máquinas da Revolução Industrial invadindo as fábricas), ele começou a compor poemas bastante originais, na obra Alcoóis, preenchendo, relativamente, a lacuna deixada por Mallarmé e Arthur Rimbaud.
Esta obra trazia o poema “Zona”, talvez o exemplo máximo do poeta, marcado pela absoluta contemporaneidade. Trata-se de um poema revolucionário, “o barco ébrio” de Apollinaire, no qual o surreal e o concreto se misturam, com referências a amigos, a passagens, a situações cotidianas, mesclando lirismo e agressividade, esta típica do futurismo. Segundo Giménez Frontín, como um bom poema cubista, “oscila entre a simultaneidade de ideias, percepções e sensações e a disposição gráfica das palavras”, assimilando “a nascente linguagem cinematográfica”. Seus primeiros versos merecem uma atenção especial, pois indicam uma mudança de rumo, causada tanto pelos movimentos literários do início do século XX quanto pela transformação de mundo, vista na sociedade, por meio, sobretudo, da Revolução Industrial, na qual os automóveis e os aviões têm papéis indispensáveis:

Enfim você se cansou desse mundo antigo

Pastora ó Torre Eiffel o rebanho das pontes parte esta manhã

Chega de viver na antiguidade greco-latina

Aqui os automóveis tem aparência velha
Só a religião fica nova a religião
Simples como os hangares da aviação


Para Alfonso Berardinelli, em Da poesia à prosa, o poema é uma “hemorragia emotiva e moral, um poema de adeus a Paris: o primeiro verso, as primeiras palavras já traziam o tom de conclusão. O poemeto nasce quando algo terminou, nasce da náusea e do cansaço. A cidade moderna é também a encarnação final de um velho mundo a ser abandonado em nome de um retorno a casa: volta à sempre-viva religião da infância, e a uma infância da religião, aos ídolos da Oceania e da Guiné”. Além disso, para Berardinelli, Paris, nesse poema, é “o centro ao redor do qual muitas outras cidades orbitam, algumas só nomeadas ou pouco mais que isso, e toda uma variada e vasta geografia sentimental do autor: postais ilustrados da interioridade e da memória”, e Apollinaire “se diverte com um romantismo de literatura popular ou cartaz publicitário”.
Alcoóis, como uma das primeiras grandes obras da poesia moderna, mostra um Guillaume extremamente eclético. Embora grande parte dos poemas, como “A canção do mal-amado”, entre outros menos conhecidos, sigam a linha de “Zona”, revelando a inserção do poeta num mundo caótico, onde a poesia é captada em cápsulas, outros textos poéticos dessa obra, como “A ponte Mirabeau”, revelam um poeta dominado por um lirismo catuliano, percebido, por exemplo, no seguinte fragmento:

Sob a ponte Mirabeau corre o Sena
E nossos amores
É preciso recolocar as dores em cena
A alegria sempre atrás da pena
Chegada a noite a hora comemora
Os dias se vão não vou embora

Lirismo que também pode ser encontrado em “Annie”, nome de uma das maiores paixões existenciais de Apollinaire, sobrepujada apenas por Madeleine, outra inspiração feminina em sua obra. Nesse poema, o poeta imagina um encontro com ela, numa América vista com olhos entusiasmados:

Sobre a costa do Texas
Entre Mobile e Galveston
Há um grande jardim de rosas
Numa casa de campo
Que é uma grande rosa

Uma mulher sempre passeia só
Dentro do jardim
Quando ela passa na estrada
Bordada de tílias
Nós nos olhamos

O amor é visto por Apollinaire de modo apaixonado e lírico. No poema “Trombetas de caça”, por exemplo, temos os seguintes versos sobre uma relação amorosa:

nossa história é nobre e trágica
como a máscara de um tirano
drama nulo arriscado ou mágico

Outro poema de Alcoóis, bastante traduzido e analisado, é “O signo”, um dos melhores de Apollinaire, sobre a influência da mudança de estação no amor dos “amantes”. Seus versos abaixo revelam, sobretudo, um trabalho elaborado de linguagem:

Fui submetido à Regência do Signo de Outono
Portanto amo as frutas e detesto as flores
Lamento todos os beijos de que fui dono
Igual à nogueira colhida diz ao vento suas dores

A influência da estação no amor também é tema do poema “Adeus”:

Colhi este pedaço de esteva
O outono está morto e lembra
Não nos veremos mais sobre a terra
Odor do tempo pedaço de esteva
Lembra que te espera



Esses poemas que têm como referência o tema do amor, a figura da amada, trazem algumas das melhores soluções de imagens e ritmos poéticos. Por isso, como também assinala Berardinelli, tratando do poema “Zona”, mas que poderia representar para toda a obra, “a miscelânea de imagens [em Apollinaire] é jocosamente sentimental e naïve”. Apollinaire equilibra esse sentimentalismo com a linguagem exata e os cortes para cada verso, que acentuam uma modernidade, em que tudo parece claro e, ao mesmo tempo, encoberto. Ou seja, a natureza romântica de Apollinaire é evidente - mas algo de sentido se perde depois que lemos os poemas, o que representa a própria poesia configurada.
Apollinaire: poeta do amor e dos caligramas (II)

Por André Dick

Dentre os poetas clássicos, Apollinaire, atualmente, um dos que mais têm possibilidades de provocar o público, por ter apostado tanto nas armas comuns de todo poeta da sua época (rimas, métricas), percebidas de modo mais assíduo na obra Alcoóis, quanto em seu imaginário visual, fundamentado em teorias textuais, registrado em seu livro Caligramas, no qual os poemas tinham uma peculiar representação visual e ideográfica, o que influenciaria diretamente na poética de e. e. cummings, poeta norte-americano, e de outros poetas visuais pelo mundo - sobretudo os do concretismo brasileiro, entre os quais estão os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Desse modo, segundo o romancista e crítico literário americano Paul Auster, a poesia de Apollinaire mesmo oscilando “de graciosos poemas de amor a ousadas experiências de amor, da rima ao verso livre e aos poemas ‘forma’” “não gera incompreensão, mesmo quando aposta numa zona de perigo” - vem à tona, novamente, os “caligramas” ou “poemas forma”, como observa Auster. Isto aproxima Apollinaire de Rimbaud. Ambos injetaram ânimo na poesia, com o talento de jogar com a expectativa do leitor - o que é lido nunca se faz compreender de uma só vez.


Na análise “Miramar na mira”, que o poeta Haroldo de Campos faz sobre o romance Memórias sentimentais de João Miramar, existe uma grata referência a Apollinaire e aos seus caligramas no tópico “O espírito moderno”:

“Apollinaire, o poeta dos Caligramas, cujas atividades formavam uma espécie de traço de união cultural entre futurismo e cubismo, pois de ambos os movimentos participava, pronunciou em 1917, no Vieux-Colombier, uma conferência memorável sob o título ‘Os poetas e o espírito moderno’. Proclamava então: ‘...Podemos prever o dia em que o fonógrafo e o cinema sendo as duas únicas formas de impressão os poetas terão uma liberdade desconhecida até agora...’ No domínio da inspiração, sua liberdade não pode ser menor que a de um jornal quotidiano que trata numa mesma página de matérias tão diversas, percorre países os mais distanciados. Perguntamos por que o poeta não teria uma liberdade pelo menos igual, e por que seria levado, na época do telefone, do telégrafo sem fio, a maior circunspecção em face dos espaços? ... Os poetas desejam, enfim, maquinizar a poesia como maquinizaram o mundo. Querem ser os primeiros a fornecer um lirismo inédito a estes meios de expressão que trazem à arte o movimento e que são o fonógrafo e o cinema”.

Pouco mais de cinco meses depois desse pronunciamento, lembrado por Haroldo de Campos, Apollinaire acabaria lançando a obra Caligramas, em que colocava em prática seu discurso de modernidade
Paul Auster identifica no poeta francês “uma nova sensibilidade, ao mesmo tempo influenciada pelas formas do passado e entusiasticamente à vontade no mundo dos automóveis, dos aviões e do cinema”. Ao seu redor, surgia, reitera-se, o cinema, uma nova percepção, o novo século que se iniciava, sob a sombra da esperança e descoberta. Surgia, enfim, outros meios de desvendar as películas da realidade. E o caligrama era a porta poética, em Apollinaire, para esse novo universo.

 Por meio do processo composicional do caligrama, Apollinaire pretendia atingir o ideograma quase perfeito. Ele afirmava que o caligrama fazia com que o leitor se habituasse a compreender sintético-ideograficamente em lugar de analítico-discursivamente, ou seja, a privilegiar a forma, acompanhada de seu aspecto visual, em detrimento da sintaxe clássica. Desse modo, o leitor descobriria, na maioria das vezes, o tema do poema por meio da forma, da estrutura visual. Mas o que seria mesmo um caligrama? Simples: uma “forma adotada no poema para produzir um efeito plástico”, consistindo “em substituir a linearidade do verso por uma série de disposições tipográficas que, às vezes, evocam o objeto que se descreve”, segundo Giménez Frontín.
Parte desses traços teóricos ressaltados pelo caligrama foi aproveitada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari na Teoria da Poesia Concreta, mas isso não significou que os três idealizadores do movimento deixassem de ver que nos caligramas “a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras” (Augusto de Campos), ao mesmo tempo que apresentam um “decorativismo sem sentido” (Décio Pignatari) e uma “figuração artificial à composição” (Haroldo de Campos).
Ainda que certamente com esses problemas, é nos caligramas que a consciência moderna de Apollinaire em estar sintonizado com o mundo desponta em mais maduro relevo. Neles, a poesia toma vida como nunca havia tomado em toda sua história.
Antes do traço, do desenho, da colocação vocabular no papel, Apollinaire é um lírico incondicional, que vê tudo à sua volta (cinemas, indústrias, novos meios tipográficos) emergir de um bule maquinário.
Um dos melhores caligramas dessa obra de Apollinaire é, sem dúvida, “A chuva”, que tem abaixo uma tradução de Sérgio Caparelli, encontrada no livro infantojuvenil Tigres no quintal:



Chovem vozes de mulheres como se estivessem mortas mesmo na recordação
Chovem também encontros maravilhosos da minha vida ó gotículas
E estas nuvens empinadas começam a relinchar um universo de cidades mínimas
Escuta se chove enquanto a mágoa e o desdém choram uma música antiga
Escuta caírem os elos que te retém encima e embaixo

Outro poema clássico da obra Caligramas é “Lettre-ócean”, analisado em O momento futurista, de Marjorie Perloff:



A obra Caligramas, no entanto, não traz apenas poemas que privilegiam o aspecto visual. Nele, também há poemas que influenciariam diretamente poetas brasileiros, como o paulista Oswald de Andrade, um dos pais do Modernismo dos anos 20, e o gaúcho Mário Quintana, fã declarado de Apollinaire.
Para Décio Pignatari, no entanto, “talvez seu projeto revolucionário esteja menos nos caligramas, mesmo ambiciosos, como ‘Lettre-Océan’, do que na paratatização sistemática, que ele chamava de ‘simplificação sintática’, cujo melhor exemplo é o de ‘As janelas’, inspirado num quadro pioneiro do abstracionismo geométrico, de autoria de Robert Delaunay”.
Esses poemas trazem versos que podem dialogar com a obra Pau Brasil, de Oswald de Andrade, no encadeamento de versos, na realidade flashes cinematográficos, próprios do cubismo (não esquecer de Pintores cubistas, de Apollinaire, lançado pela L&PM Pocket). Na tradução de Pignatari, abaixo, toda a desenvoltura de Apollinaire para construir imagens fortes fica clara:

Do vermelho ao verde todo amarelo morre
Quando cantam as araras nas florestas natais
Cavalos-de-frisa de pihis
Aves chinesas de uma asa só voando em dupla
É preciso um poema sobre isso
Enviaremos mensagem telefônica
Traumatismo gigante
Faz escorrer os olhos

(...)

Árvores ocas que abrigam alcaparras vagabundas
Os Chabinos cantam árias de morte
Às chabinas fugitivas
E a gansa uá-uá trombeta ao norte
Traduções de Guillaume Apollinaire

Por André Dick

Ombre

Vous voilà de nouveau près de moi
Souvenirs de mês compagnons morts à la guerre
L’olive du temps
Souvenirs qui n'en faites plus qu’un
Comme cent fourrures ne font qu'un manteau
Comme ces milliers de bleussures ne font qu’un article
de journal
Apparence impalpable et sombre Qui avez pris
La forme changeante de mon ombre
Um Indien à l’'affût pendant l’éternité
Ombre vous rampez près de moi
Mais vous ne m’entendez plus
Vous ne connîtrez plus les poèmes divins que je chante
Tandis que moi je vous entends je vous vois encore
Destinées
Ombre multiple que le soleil vous garde
Vous qui m’aimez assez pour ne jamais me quitter
Et qui dansez au soleil sans faire de poussière
Ombre encre du soleil
Écriture de ma lumière
Caissons de regrets
Un dieu qui s'humillie



Sombra

Aqui estás de novo perto de mim
Lembranças de meus companheiros mortos na guerra
A oliva do tempo
Lembranças que formam uma só
Assim como cem peles formam um só casaco
E centenas de feridos só fazem uma notícia
de jornal
Aparência impalpável e sombria que havias tomado
A forma cambiante de minha sombra
Um índio à espreita por toda a eternidade
Sombra tu rastejas perto de mim
Mas já não me olhas nem me ouves
Não conhecerás os poemas sublimes que canto
Enquanto sou eu quem os digo e os vejo
Destinos
Sombra múltipla que o sol te guarda
Tu que amas o suficiente para não me deixar nunca
E que danças ao sol sem levantar poeira
Sombra tinta do sol
Escritura de minha luz
Arcão de penas
Um deus que se humilha

Tour

Au Nord au Sud
Zênith Nadir
Et les grands cris de l’Est
L’Océan se gonfle à l’Ouest
La Tour à la Roue
S'adresse

Torre

Ao Norte ao Sul
Zênite Nadir
E os grandes gritos do Leste
O oceano se distende a Oeste
A Torre à Rua
Se endereça


Signe

Je suis soumis au Chef du Signe de l’Automne
Partant j’aime les fruits je déteste les fleurs
Je regrette chacun des baisers que je donne
Tel un noyer gaulé dit au vent ses douleurs

Mon Automne éternelle ô ma maison mentale
Les mains des amantes d'antan jouchent ton sol
Une épouse me suit c'est mon ombre fatale
Les colombes ce soir prennent leur dernier vol

Signo


Fui submetido à Regência do Signo de Outono
Portanto amo as frutas e detesto as flores
Lamento todos os beijos de que fui dono
Igual à nogueira colhida diz ao vento suas dores

Meu outono eterno ó minha estação mental
Mãos dos amantes de outrora em teu solo agarradas
Uma esposa me segue, é minha sombra fatal
As pombas à tarde batem suas últimas asas



Clotilde


L’anémone et l’ancolie
ont poussé dans le jardin
où dort la mélancolie
entre l'amour et le dédain

Il y vient aussi nos ombres
que la nuit dissipera
le soleil qui les rends sombre
avec elles disparaîtra

les déités des eaux vives
laisent couler leur longs cheveux
passe il faut que tu poursuive
cette belle ombre que tu veux

Clotilde

A anêmona e a ancólia
No jardim em crescimento
Onde dorme a melancolia
Entre o amor e o esquecimento

Vai-se também nossa sombra
Que a noite dissipa
Com ela sempre ressoa
O sol que a faz sombria

As deusas das águas vivas
Deixam crescer seus cabelos
Passar além, o que prossiga
Bela sombra que se lança adentro

sábado, 2 de abril de 2011

Kurt Schwitters: o dadá alemão (I)

Por André Dick

Há uma tendência muito forte de a crítica literária esquecer das vanguardas do início do século XX, como se elas não tivessem sido de extrema importância para a linguagem de todas as artes.
O alemão Kurt Schwitters, nascido em 1887 e morto em 1948, antes de ser um poeta, era um artista, vinculado ao dadaísmo. Criado por Tristan Tzara, o dadaísmo, tal como o futurismo, foi inicialmente liquidado. Hoje, se vê que influenciou artistas como Marcel Duchamp e John Cage.


As primeiras manifestações da vanguarda foram, como observa Paz, “cosmopolitas” e “poliglotas”. Thomas F. Marinetti, criador do futurismo, por exemplo, escreveu seus manifestos em francês e foi polemizar em Moscou e em São Petersburgo com os cubo-futuristas russos. A vanguarda trouxe o simultaneísmo, poética originada no cubismo e no futurismo. Como salienta Paz, uma das ideias centrais do cubismo era o simultaneísmo, que está ligado ao estruturalismo de Roman Jakobson e à montagem cinematográfica, tal como foi empregada por Sergei Einstein. Os futuristas deram ao simultaneísmo a “sensação” e o “movimento” – mesmo que ligando à guerra e ao surgimento dos automóveis, por exemplo, sendo incorporado lamentavelmente pelo discurso fascista. Quando proclamaram uma estética da sensação, os futuristas abriram as portas à temporalidade. Consequentemente, o futurismo manifestou seu desejo não pelas “construções do porvir”, mas pelas “destruições do instante”.


Enquanto um poema de Mallarmé ou de Valéry, assinala Paz, é um “símbolo de símbolos”, um quadro cubista “é a ideia de um objeto exposta como um sistema de relações”. Se há semelhanças no que se refere ao fato de que no poema simbolista e no quadro cubista o visível revela o invisível, esta revelação se dá por maneiras distintas. No poema, “o símbolo evoca sem mencionar; no quadro, as formas apresentam sem representar”. Dessa maneira, o simbolismo foi transposição (Mallarmé), enquanto o cubismo, representação. Paz explica que na obra de Apollinaire há um trânsito entre transposição e representação, o que pode ser constatado tanto em Alcoois quanto em Calligrammes. Apollinaire se viu influenciado por alguns poemas de Blaise Cendrars, cuja obra também é destacada por Marjorie Perloff em O momento futurista, além de ter servido de banquete para Oswald de Andrade aplicar sua antropofagia no modernismo de 22. Os poemas de Cendrars também ganhariam um eco significativo, em terras francesas, na poesia de Pierre Reverdy, autor destacado por Paz também na cronologia não linear de seu Os filhos do barro.


Incorporando elementos do futurismo e do cubismo, Kurt Schwitters é um dos poetas de vanguarda mais desafiadores. Mário Faustino o considera como “um dos primeiros artistas visuais abstratos, o mais importante poeta dadá de língua alemã, o principal cultivador de sons-poema”. Tem como principais influências August Stramm e Rauol Hussman. A partir do contato com a obra deste, conta Faustino, fez sua Ursonate, na qual trabalhou entre 1921 e 1932. Este é um poema, segundo Moholy-Bagy, de 35 minutos de duração, “contendo quatro movimentos, um prelúdio e uma cadência no quarto movimento. As palavras usadas não existem, ou melhor, poderiam existir em qualquer língua; não têm contexto lógico, e sim apenas emocional; afetam o ouvido por suas vibrações fonéticas, à maneira de música”. Depois, como conta Faustino: “Recita seus poemas – magnificamente, segundo todos os testemunhos – por toda a Alemanha. Sua poesia é, também, por incrível que pareça, um sucesso editorial – além do sucesso dramático das declamações. Participa do movimento dada em várias cidades da Alemanha e da Holanda, com van Doesburg. Amizade com Moholy-Nagy e com Mies van der Rohe. Relação amistosa com os dadaístas franceses e, mais ainda, com o franco-germânico Arp. Mais tarde integra-se plenamente nos movimentos abstracionistas da Alemanha e, também, da França (...). Com o nazismo, deixa a Alemanha. Noruega. Inglaterra. Vive miseravelmente. Melhora depois da guerra, para falecer, na Inglaterra, em 1948”.


Preso ao rótulo do dadaísmo (sobretudo por causa da revista, de inspiração dadaísta, que publicava, Merz), ninguém quase sabe que Schwitters fez poemas e não só colagens com as quais ficou conhecido. Segundo Hans Richter, em Dadá: arte e antiarte, ele “era PELA arte de maneira absoluta e irrestrita, durante 24 horas por dia. Seu gênio não tinha nada em comum com a modificação do mundo, dos valores, do presente, passado ou futuro, nada com tudo aquilo que se anunciava em Berlim com alarde. Ele não falava em 'morte da arte', 'a-arte' ou 'antiarte'. Pelo contrário – cada bilhete de bonde, cada envelope, papel de embrulhar queijo, anel de charuto, solas de sapato rasgadas, fitas, arames, penas, panos de chão, tudo o que tinha sido jogado fora...tudo isso era envolvido pelo seu amor e reencontrava um lugar de honra na vida, isto é, na sua arte”. Ou seja, “Tudo nele era livre; tudo era presidido por um espírito no qual reinava a natureza. Nenhum ressentimento, nenhum vestígio de impulsos recalcados. Tudo vinha diretamente das profundezas à superfície, sem hesitações, pronto, acabado”.

Kurt Schwitters: o dadá alemão (II)

Por André Dick

No artigo “Kurt Schwitters ou o júbilo do objeto”, o poeta e ensaísta Haroldo de Campos mostra bem alguns pontos da poesia desse alemão. Para ele, a obra de Schwitters é dominada pela “redescoberta do mundo perdido do objeto – a parafernália de detritos, lascas, aparas, ferros velhos, cacos de vidro, jornais, impressos sem uso etc., que são o lastro rejeitado pela vida moderna em seu trânsito cotidiano”, constituindo-se em “ágil trampolim para a sua busca incessante do objeto em si, do eidos da expressão poética ou plástica”. A arte dele, ainda, segundo Campos, “caracteriza-se pelo uso constante da colagem, pelo humor que reponta da imprevista associação dos detritos do cotidiano, sejam estes bilhetes de bonde e envelopes de carta postos em súbita assemblage, sejam excertos da conversa de todos os dias, do jargão popular e jornalístico, do estoque de frases feitas etc.”.


Além de nome de revista, Merz era, para Schwitters, o nome de sua arte, tirado da segunda sílaba da palavra KOMMERZ (Comércio), que aparecia solta numa obra em que mostrava, nas colagens, fragmentos do anúncio do Banco do Comércio (Kommerzbank). Com ela, Schwitters sugeria as transformações que trazia sua obra. Schwitters via um prazer pessoal em lidar com lixo para transformá-lo em arte. Para realizar seus quadros, ele trazia essa verdadeira coleção de detritos. Ao começar a escrever poemas com 17 anos, também denominou essa atividade de Merz.
Para Haroldo, há “estreitas zonas de contato e permeabilidade entre as collagens visuais de Schwitters e suas collages verbais, além da análoga técnica de expressão implícita nos dois processos. Observando-se reprodução de seus quadros do gênero, verifica-se que o dado meramente tipográfico sempre está presente nessas composições, metamorfoseado através de découpages, inversões, propositados, contrapontos de caracteres gráficos de tipos (gótico, itálico, caixa alta, caixa baixa etc.) e origens diversos, funcionando como um fator que se resolve gestalticamente no conjunto das partes do quadro, indesligável delas”.
É interessante como de um simples recorte Schwitters refaz a trajetória da palavra – inteira, referindo-se a uma instituição bancária, depois recortada e fragmentada, como se fosse o resto do tesouro em que ela não coube. Só que a maneira que Schwitters encontra para renová-la é inserindo ela na sua arte, que pode ser vista como o lixo. Sobre Merz, Schwitters ainda disse: “Merz é liberdade em relação a todos os princípios, por amor da criação artística. Liberdade não é falta de disciplina, e sim o produto de da estrita disciplina artística. Merz também significa tolerância para com qualquer limitação artisticamente motivada. Todo artista deve ter liberdade para fazer um quadro a partir do nada, salpicando papéis, desde que seja capaz de formar um quadro”.
A inserção da palavra nas artes plásticas mostra o quanto Schwitters estava de acordo com seu tempo – na multiplicidade e a dissolução de áreas muitas vezes opostas. Ainda hoje há uma resistência a se ver literatura nas artes plásticas, o que pode ser negado por obras tão interessantes como a sua. Ele falava de seu interesse pela poesia: “Os elementos da poesia são as letras, as sílabas, as palavras, as sentenças. A poesia surge da interação desses elementos. O significado é importante só quando é empregado na qualidade de um desses fatores. Jogo sentido contra sem-sentido (Unsinn, nonsense). Prefiro o sem-sentido, mas isso é questão pessoal.Tenho pena do sem-sentido porque até agora só raramente tem sido artisticamente usado; eis por que adoro o sem-sentido”.


Os poemas, desse modo, ficaram em segundo plano, igual a toda a poesia de vanguarda do início do século XX Como é o caso da obra de Schwitters, poeta de incrível talento em lidar com imagens surreais, absurdas, mas, ao mesmo tempo, extraordinárias. Embora Schwitters, como observa Haroldo em seu ensaio, fosse também preocupado com a invenção tipográfica e com a desarticulação dela, quando pintava, com o visual dos vocábulos, suas possíveis disposições no horizonte espacial e suas reações e transformações recíprocas quando postos em presença simultânea, sua linguagem se relacionava plenamente na construção singularíssima de seus poemas, baseados numa repetição contínua de ideias e um jogo de palavras dificílimo de ser traduzido, pois à luz de uma revalorização dos sons e do trabalho tipográfico com as letras, característica do futurismo, ao qual Schwitters esteve, por meio do dadaísmo, ligado.
Talvez o poema mais conhecido e conciliador das artes (literária e plástica) de Schwitters seja “Anna Blume”, publicado em 1919. Para Haroldo de Campos, ele “reintegra na língua poética algo perdido no entulho do idioma cotidiano e defeso aos páramos vestalizados da poesia bela-arte, como seja: a repetição memorizada para uso escolar da declinação pronominal pessoal (...), o nonsense das adivinhas populares, frases de diz-que-diz-que comadresco etc., organicamente fundidos pelo condão de imagens imprevistas (...) e associações inacostumadas, deslocamentos da ordem natural das coisas da expressão, cujo êxito na presentificação do objeto poemático só se mede pela pane que a linguagem ordenada pelo bom senso, ainda quando recorra ao chamalote postiço duma convenção poética perempta, sofre diante desse mesmo objeto”. O poema saiu numa versão diferente em Crisantempo, com cada letra grafada de uma maneira diferente. Aqui, apresentamos a versão original de Haroldo, linear, que constava em A arte no horizonte do provável.


ANNA BLUME/ANAFLOR (Kurt Schwitters/Haroldo de Campos)

Ó amada dos meus vinte-e-sete sentidos, eu
Te amo! – Tu, te, ti, contigo, eu te, tu me.
– Nós?
Isto (de passagem) não vai bem aqui.
Quem és tu, mulher inumerável? Tu és
– és? – Eras, andam dizendo, – deixa
que digam, nem sabem em que pé
está o campanário.
Chapéu nos pés, caminhas sobre as mãos,
volante sobre as mãos.
Olá, pregas brancas serram tua roupa rubra,
Rubroteamo Anaflor, em rubro te me amo! – Tu
teu te a ti, eu te, tu me. – Nós?
Isto (de passagem) lança-se à brisa fria.
Rubraflor, rubra Anaflor, que andam dizendo?
Adivinha: 1.) A doidiv’Ana tem uma ave.
2.) Anaflor é rubra.
3.) E a ave? Quem sabe?
Azul é a cor dos teus cabelos louros.
Rubro é o arrulho de tua ave oliva.
Tu criatura simples num vestido cotidiano, bem-amado
animal verde, eu te amo! Tu te ti contigo, eu
a ti, tu a mim, – Nós?
Isto (de passagem) vai para o braseiro.
Anaflor! Ana, a-n-a, gotejo teu
nome. Teu nome em gotas, tenra gordura bovina.
Sabes Ana? Já o sabes?
de trás para diante podes ser lida, e tu
a mais bela de todas, para trás
ou para diante
serás: a-n-a.
Gordura bovina goteja ternura em meu dorso.
Anaflor, animal gotejante, eu te me amo.


Como lembra Faustino, “Conta Josef Albers (citado por Robert Motherwell) que Schwitters costumava ouvir as conversações de mulheres em bondes e trens, bem como as canções populares de garçons e operárias, e que muitos de seus escritos se baseavam no que ouvia em tais ocasiões – Schwitters se limitava a entremear paródias e trocadilhos”. Vejamos “Gatos”, na tradução de Faustino:

Gatos
Pernas
gatos pernas desejo homem
seres mundo terra rodeia gatos
gatos patinham capim macio
Fios se cruzam traço
celembram gritaria os vinte mil gatos
patas em tinta rabos espaço
espaço, espaço, espaço gatos
e gatos, gatos, gatos espaços
e patas, patas, patas
luminosos
seres

Ou as palavras-montagem de “Nós” (também tradução de Faustino):

vivemos nós
esticamos canelas nós
morremos nós
mundo superesgrimado mundo
vida mudamorte
elasticidade raiodealcance sino
brasa soa mundo

São exemplos de poemas ainda com palavras, mas Schwitters também faria “sons-poema”, nos quais Faustino destaca a “beleza gráfica”, com “humour gráfico e outras sensações perfeitamente transmissíveis por meios sonoros e gráficos, sem referências semânticas e simbólicas. O poema ouvido, e o poema visto. O poema ouvido-e-visto” – quase como suas colagens plásticas, que suscitam o verbal tanto quanto suas composições sintáticas.
Como afirma Marjorie Perloff, o momento futurista, como o próprio Schwitters, representa

breve fase em que a vanguarda se define pela sua relação com o público de massa. Como tal, o seu extraordinário interesse para nós reside em ser o momento climático de uma ruptura, o momento em que a integridade do medium, do gênero, de categorias tais como “prosa” e “verso” e, o mais importante, “arte” e “vida” foram questionadas. É o momento em quem a colagem, a mise en question da pintura como uma representação da “realidade”, faz seu primeiro aparecimento, quando o manifesto político é percebido esteticamente, da mesma forma que o objeto estético – verbal, visual, musical – são cada vez mais usados em conjunção: o futurismo e a época da arte da performance, da chamada poesia do som e do livro de artista. Mas atrás desse impulso para a decomposição, para um rompimento das artérias que produzirão o novo, há uma extraordinária fragilidade e inconstância.

Fragilidade e inconstância que não encontramos em Schwitters.