quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Entrevista sobre Calendário e poesia

Concedi uma entrevista ao Poemas no ônibus e no trem, da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, sobre o Calendário, premiado com o Prêmio Açorianos de Poesia. Convido você para a leitura.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Calendário



O livro Calendário (Oficina Raquel), de André Dick, recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura, promovido pela Prefeitura de Porto Alegre, através da Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria de Municipal da Cultura, na categoria Poesia, em 12 de dezembro de 2011. Havia sido indicado ao lado de Ode paranoide, de Marco de Menezes, e Os códigos da alegria, de Paulo Roberto do Carmo. O autor agradece pela honra dada pelo júri e a todos que estiveram envolvidos na realização deste livro.


Veja a lista de todos os vencedores. E duas matérias: uma na Zero Hora e outra no Correio do Povo.



quarta-feira, 26 de outubro de 2011

John Cage: o Nada e o silêncio (I)

Por André Dick

Na introdução do livro Silence, John Cage escreveu: “Por mais de vinte anos tenho escrito artigos e dado palestras. Muitas delas têm sido incomum na forma… porque tenho empregado nelas meios de compor semelhante ao meu meio de compor no campo da música… Conforme olho para trás, me dou conta de que uma preocupação com a poesia se encontrava em mim desde cedo. Na faculdade de Pomona, em resposta a perguntas sobre os poetas do Lago, escrevi à maneira de Gertrude Stein, irrelevante e repetitivo”. É este estilo “irrelevante e repetitivo” uma das marcas de John Cage na literatura. O que o torna bastante relevante e um avesso da repetição.


Como conta o próprio Cage: “Um editor de Londres enviou um formulário em branco para que eu preenchesse, então eu seria incluído na pesquisa de poetas contemporâneos da língua inglesa. Eu joguei fora. Semanas depois chegou um pedido urgente, mais um formulário duplicado. ‘Por favor retorne com uma foto lustrosa.’ Obedeci. Julho, agosto, setembro. O editor, então, enviou uma carta dizendo que tinha sido decidido que não sou um poeta significativo: Se eu fosse, qualquer um também o seria”. É uma história curiosa, pois Cage costuma ainda não ser visto como poeta. Diz Octavio Paz, no seu ensaio ”e. e. cummings: recordação”, de 1965, ou seja, posterior à publicação de Silence, o primeiro livro de Cage: “Não sei o que pensar de sua música (pensa-se a música?); em compensação, sei que é um dos poucos poetas, apesar de não escrever poemas, que existem hoje nos Estados Unidos”.
Cage nasceu em Los Angeles, em 1912, e foi, talvez, na segunda metade do século XX, embora pareça paradoxal, pois é conhecido como músico, um dos poetas norte-americanos mais importantes. Começou a compor partituras bem antes de se envolver com as palavras. Aluno de Henry Cowell e Arnold Schoenberg, recebia aulas de graça deste último, com a condição de que dedicasse sua vida à música.
Avesso à harmonia, Cage teve esse defeito apontado por Schoenberg, que enxergava nisso um muro em qualquer carreira musical. No entanto, contrariando o mestre, Cage afirmou que devotaria sua vida a bater com a cabeça nesse muro. Foi também um dos responsáveis por trazer à cultura norte-americana o aprendizado oriental do I Ching e, com ele, a música indeterminada, além da consciência do acaso (o silêncio), fazendo com que suas peças musicais tivessem bastante repercussão. Como a peça 4’33 (1952), em que, nesse tempo exato, a plateia fazia os sons, durante o “silêncio” da apresentação. “O que se busca”, segundo Cage, “não é a indeterminância ou determinância e sim não intenção. Ela é a base do silêncio, que está cheio de sons que simplesmente ocorrem. A única diferença entre aqueles sons e os sons que você provoca é a intenção. O mais importante é a ausência de intenção e a aceitação do que acontece”. Para ele, o “acaso” é “um mecanismo que “não tem nada a ver com meus sentimentos e meus pensamentos, uma operação que permite libertar-me do meu ego. O ego é uma barreira para a experiência. O acaso permite uma situação que não expressa o ‘eu’, mas que abre o ‘eu’ para coisas que estão fora dele”. Nesse sentido, a crítica literária norte-americana Marjorie Perloff, em Poetics of indeterminacy, percebe que a poesia, desde Rimbaud, busca o acaso, a não intenção, o que ressoa em Gertrude Stein, em Pound, em William Carlos Williams e Samuel Beckett, entre outros, até chegar à poesia de John Cage.


Silence foi a primeira obra (musical literária/literária musical) de John Cage. A obra resulta de suas experiências existenciais, um mosaico anárquico musical, partindo sempre da música para o pensamento poético. Há a “Conferência sobre o nada” e a “Conferência sobre algo”, poemas sobre preparação de piano, textos em prosa reproduzindo diálogos do cotidiano de Cage: contatos, amizades etc.
Sua única obra traduzida (por Rogério Duprat e revisada por Augusto de Campos) no Brasil, sucessora de Silence, De segunda a um ano (A year from monday) reúne alguns dos caminhos mais percorridos por Cage em sua trajetória poética. Nele, há o “Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores)”, que se estende pelo livro e por várias obras suas e reúne ideias colhidas ao acaso, sobre política, música, sociedade, entre outras coisas, como fazia Thoreau, ídolo de Cage, em A desobediência civil.
Há também o “Diário: seminário de música de Emma Lake”, em que Cage, ao comentar sobre suas peregrinações como compositor, ao mesmo tempo tece comentários sobre diversos tipos de comida em diversas regiões dos Estados Unidos; “Papo nº 1”, uma série de colagens de versos, palavras, pensamentos, colhidos, também, ao acaso total, com forte influência do Dadaísmo; o capítulo “Como passar, chutar, cair e correr”, com uma série de histórias de pessoas que cercavam a vida de Cage, principalmente, é claro, músicos (Christian Wolff, David Tudor, Stockhausen), explicando seus métodos de elaboração para as peças, realizadas sobre operações de acaso.
O livro também apresenta homenagens para outros artistas: “26 proposições sobre Duchamp” (já mencionado); “Miró na terceira pessoa: 8 proposições” (sobre o pintor espanhol), “Nam June Paik: um diário” (sobre o videomaker) etc. No campo específico da música, há muitos momentos: em “Daqui, para onde vamos?”, que aborda os sentidos dos sons; “Duas proposições sobre Ives” (poema com um trabalho tipográfico singular e as palavras interrompidas por sinais, como uma peça musical pelas notas); a “Conferência na Juilliard”, conferência em forma de poema, dividida em quatro seções. Apresentada na Juilliard School of Music, a convite dos alunos dela, Cage lembra, em De segunda a um ano, que, enquanto falava o texto, seu amigo David Tudor tocava algumas peças de piano, composições de Morton Feldman, Christian Wolff e dele próprio. Eram usados cronômetros para coordenar o programa, feito por Tudor sem que Cage o conhecesse previamente.


A primeira seção iniciou aos 0’0’’, a segunda aos 12’10’’, a terceira aos 24’20’’ e a quarta aos 36’30’’. Cage lembra que escreveu o texto em quatro colunas “para facilitar uma leitura rítmica e a medição dos silêncio”, lendo “cada linha da página da esquerda para a direita, não de cima pra baixo, seguindo as colunas”, para “evitar o resultado artificial que poderia decorrer do fato de seguir rigorosamente a posição das palavras na páginas”.
Em De segunda a um ano, por sua vez, também começa a publicar seu longo poema “Diários (Como melhorar o mundo, você só tornará as coisas piores)”, que se estende por algumas obras. Para Augusto de Campos, é o primeiro poema longo, depois de Os cantos, de Ezra Pound, com qualidade. Isso porque Cage foi um leitor atento dos Cantos poundianos. Não por acaso, existem referências multiculturais em seu “Diários (Como melhorar o mundo, você só tornará as coisas piores)”. Do mesmo modo que em Pound, Cage vai fazendo uma colagem de fatos, situações, mesclando política e artes em geral, com um senso de humor, no entanto, mais apurado do que encontramos em Pound. Outro detalhe que os aproxima é a admiração pelo universo oriental. Ainda assim, Cage não aplica ideias específicas sobre política, fazendo apenas menção ao contexto socioeconômico dos Estados Unidos, sobretudo diante do mundo, e ao universo midiático (muitas de suas colagens parecem notícias de jornal). Na dedicatória de De segunda a um ano, observa: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os E.U.A. possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos”.

John Cage: o Nada e o silêncio (II)

Por André Dick

Depois de De segunda a um ano, vieram M (1973), reunindo escritos de 1967-72 e Notations (1969). O último livro desta linha é Empty words (1979). A obra de Cage é um painel vigoroso da literatura depois da metade do século XX. Na obra M, por exemplo, falava sobre as principais figuras que tinham seus nomes iniciados com a letra-título (como Merce Cunningham, seu parceiro até o fim da vida, e Mao Tsé-Tung); em outras obras, apresentava seus “Mesósticos” (com uma palavra transpassando, verticalmente, o poema ou a anarquia das letra-sets comentada por Augusto, escolhidas ao acaso). Em todos, referências a escritores (Jack Kerouac, Gertrude Stein), a músicos (Mozart, Beethoven, Schoenberg), entre outros. Cage ainda teve, como referências de geração, o filósofo dos mass media Marshall McLuhan e o artista plástico Marcel Duchamp. Com suas colagens, figuras, sons, um dadaísmo literário-musical. Cage provém também do Futurismo e do Dadaísmo.


Durante anos, principalmente depois de se tornar também um poeta, Cage foi uma espécie de artista multimídia, com seu “Musicircus”, gravando, inclusive, poemas de e. e. cummings, que não havia dado importância às suas experiências quando levadas a ele por Cage, e trechos de textos de Finnegans Wake, a obra mais complexa de Joyce, no projeto Roaratorio.
O acaso, a não intenção, o I Ching e a mistura de ideias ocidentais às orientais fazem com que a literatura de Cage, mesclada à sua música (afinal, ele compunha e escrevia, antes de escrever, compunha mais, depois, as duas coisas), rivalizem em inovação com as obras de James Joyce, Finnegans wake e Ulysses. Alguns textos do primeiro, inclusive, foram musicados por Cage, sobretudo no projeto “Roaratorio”, de 1979. Augusto de Campos lembra, em “Outras palavras sobre Finnegans wake” (ensaio de À margem da margem), que Cage, “que já em 1942 musicara o fragmento ‘The wonderful widow of eighteen springs’, pertencente ao Finnegans wake” prestou outras homenagens à obra: “A partir da ideia de extrair do texto o que chama de ‘mesósticos (acrósticos montados sobre as letras intermediárias da palavra) com o nome de James Joyce, através de operações aleatórias, produziu Writing through Finnegans wake (1977) e Writing for the second time through Finnegans wake (1978)”. O poeta norte-americano gostava tanto do poeta irlandês que apresentou sua obra, assim como fez com a de cummings, ao seu amigo músico Pierre Boulez, que, mais tarde, discordou do amigo a respeito de algumas ideias sobre a utilização do acaso no universo musical.


Declarou em For the birds (1976), a Daniel Charles, que Joyce foi seu principal inspirador. O Futurismo, uma das alavancas da work in progress de Joyce, foi também uma das referências de Cage, tal como o Dadaísmo – Duchamp, seu amigo, da mesma geração, é um representante das colagens no século XX. Em determinada época, ambos discutiam uma possível versão para a música de Um lance de dados, de Mallarmé. Este era outro poeta que agradava muito a Cage; ele e a seu amigo, com quem jogava xadrez, Marcel Duchamp.
Com isso, conhecer a obra de Cage – musical e poética – é lidar com uma nova percepção poética que, ao mesmo tempo em que descende de poetas como Gertrude Stein e Ezra Pound, também descende de outros visualmente mais “excêntricos”. As influências de Cage? “cummings, Pound, Joyce, Gertrude Stein… Depois, Thoreau. Cummings, mais pela sua tipografia excêntrica, e Joyce por motivos óbvios…”, respondeu o próprio Cage numa entrevista feita por Rodrigo Garcia Lopes, publicada em Vozes e visões.
O poeta que transformou de todas as maneiras a tipografia comum pode ser visto, com certeza, nos poemas em que Cage utiliza suas letra-sets, em formatos e tamanhos diferentes. Mesmo assim, a tipografia excêntrica de Cage parece, no tamanho daquela adotada em alguns poemas, descender mais dos “caligramas” do poeta francês Guillaume Apollinaire, o que não há em cummings (os poetas feitos para “representarem” seu conteúdo). Para Augusto, “há uma forte presença cummingsiana na obra de Cage, que compartilha com o poeta uma generosa ética anarco-individual da cidadania americana, com raízes comuns na ‘desobediência civil’ de Thoreau”. Octavio Paz, no ensaio intitulado “e. e. cummings: recordação” (de Signos em rotação), escreve, comparando o comportamento pessoal de cummings e Cage: “Estive em contato com alguns poetas e artistas anglo-americanos. Nenhum me deu esta sensação de extrema simplicidade e refinamento, humor e paixão, graça e ousadia — exceto o músico John Cage. Mas Cage é mais inteligente e complicado: um ianque que fosse também Erik Satie e um sábio oriental. O dadaísmo e Bashô. O humor de cummings se parecia com o box (jogo que já foi de cavalheiros em certa época): o de Cage é menos direto e mais corrosivo”.


Discípulo do pensamento anárquico de Henry David Thoreau, uma referência cultural da cultura dos Estados Unidos, Cage foi certamente o autor que mais rompeu as fronteiras das artes (uma afirmação que pode soar exagerada, se vermos outros artistas, mas em seu caso absolutamente natural e partilhada por muitos). Aprendiz de Schoenberg, Cage não se satisfez em trabalhar, elaborar partituras, criar o piano preparado, no campo da música, como depois o transportou seu pensamento – assim como seu silêncio – para a sua filosofia poética inserida no Nada. Antes já havia o silêncio de Thoreau, que Cage buscara em Walden. Para Cage, Thoreau “percebeu que o silêncio não existe. Ele tinha consciência do silêncio e do fato de que ele não existe, de que o silêncio na verdade são os sons. Para ele, o momento que estamos vivendo agora é silêncio e os sons que percebemos são apenas bolhas em sua superfície”.
Se lermos Heidegger, e lermos especificamente sobre o Nada, veremos que este conceito é complexo. Tanto quanto o trabalho de Cage rompendo fronteiras. O Nada em Cage estava tão próximo do tempo (4’33), quando o pianista entrava no palco para não tocar nada, enquanto a plateia fazia a música, entre xingamentos, quanto da conferência irrelevante e repetitiva, diante de uma plateia ávida em levantar e se livrar daquela monotonia tediosa vertida em palavras por um Cage pouco preocupado em agradar. É comum se achar que a cultura é feita de faíscas gradativas que irrompem do enorme discurso pomposo do exagero. Em Cage, esse exagero é abolido – em mão dupla, pois retorna em forma de reverso a um discurso desgastado. Essa mão dupla converte-se exatamente no Nada, que se dizia capaz de romper amarras e destituir poderes, acabando com o curso tedioso de uma certa negatividade admirada. Seu silêncio não faz parte de um programa pré-concebido, mas da vivência.
A verdade é que o arrozal de textos, conferências, anotações parecidas com bilhetes, fragmentos de diários, observações ao acaso, não pareciam fazer de Cage um poeta literário.


Cage pertenceu a uma geração que fez da colagem o seu ruído no mundo contemporâneo convertido em silêncio pelo excesso de dúvidas e desconfiança do todo.
Para Cage, a arte é quase como um mosaico dadaísta: só com os fragmentos é que podemos entender um pouco da precariedade que sentimos ao perceber o Nada e só este pode caber na mente de quem luta para que ele não exista, podendo vir a ser uma espécie de redescoberta de algum gesto, de alguma obra.
Assim como sua obra musical, representativa de um pensamento anárquico (o silêncio, com seu pulso grave na câmera de Dakota, na qual Cage comprovou que o silêncio não existe, é apenas nós mesmos, ideia que Cage usou até não poder mais, talvez chamando mais atenção para ela do que para sua obra, bem mais interessante que esta peça de engrenagem), sua obra “literária”, “livresca”, “filosófica” – as palavras e as aspas não seriam nunca interrompidas – confere uma espécie de retomada – por incrível que possa parecer, num autor tão cheio de rupturas – da tradição.
Em “O futuro da música: credo”, texto que abre Silence, Cage escreve: “onde quer que estejamos, o que ouvimos é ruído. Quando o ignoramos, nos incomoda. Quando o escutamos, descobrimos que é fascinante. O som de um caminhão a 90 quilômetros por hora. Os ruídos entre uma emissora de rádio e outra. A chuva. Nós queremos capturar e controlar estes sons, utilizá-los não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais”. Com seus ruídos musicais e poéticos, Cage merece ser descoberto e estudado. Embora apenas um livro dele tenha sido publicado no Brasil, De segunda a um ano, certamente os outros livros e a sua obra musical não chegaram aqui por falta de apoio financeiro, não por desinteresse do público.


Conhecer a obra de Cage é lidar com uma nova percepção poética que, ao mesmo tempo em que descende desses poetas referidos, também descende de outros que ousaram lidar com o aspecto visual da poesia, como Guillaume Apollinaire e e. e. cummings, do qual Cage admirava, sobretudo, a tipografia excêntrica, mas com o qual nunca havia conseguido fazer amizade e que é referencial para a poesia concreta. Há, igualmente, uma presença do objetivismo de Louis Zukofsky, e é importante lembrar que Cage frequentou o Black Mountain College, onde se reuniam poetas como Charles Olson e Robert Creeley.
Descendente direto de uma tradição moderna firmada, John Cage merece ser descoberto e estudado. Do mesmo modo que Cummings, Gertrude e Pound, Cage levou a cabo, até o fim da vida, o gosto pela experimentação, morando entre os silêncios e, sobretudo, barulhos de Nova York, até 1992.
Fragmentos de John Cage

Abaixo, apresentamos alguns fragmentos de textos (entre a poesia e a prosa) de De segunda a um ano, único livro de John Cage lançado no Brasil, em 1985, pela Hucitec. A tradução é de Rogério Duprat, conhecido por seu trabalho também junto aos tropicalistas, com revisão feita pelo poeta Augusto de Campos.


Fragmentos de “Conferência sobre o compromisso”


A fim de cumprir com todos os nossos compromissos, precisamos de mais ouvidos e olhos do que tínhamos originalmente. Além disso, os que tínhamos estão ficando gastos. Em que sentido estou perdendo meu ouvido para a música? Em todos os sentidos.

*

Fazer? Ou já foi feito por nós? O que fizemos para nascer? Acaso nós escolhemos, depois de meditar, a vida aqui, em lugar de um outro planeta ou em um outro sistema solar, sentindo que havia melhores oportunidades na Terra? Que a gente iria mais longe?

*

Agora chegamos ao tema da descontinuidade em relação ao compromisso. Digamos que eu tenha um compromisso. Digamos que alguém me interrompa enquanto estou trabalhando. Se eu permito (que foi o que eu fiz quando fui concebido), então eu entro na descontinuidade. Naturalmente, eu posso dizer: “Não me aborreça”, perdendo, assim, a oportunidade de renascer.

*

O que é que está errado? A meteorologia ou os nossos calendários? Este devia ser o pior mês; talvez tudo tenha saído fora de posição.

*

O que foi que, realmente, me fez escolher a música em lugar da pintura? Só porque as pessoas me disseram coisas mais bonitas sobre minha música do que sobre minhas pinturas? Mas eu não tenho ouvido absoluto. Não consigo sustentar uma nota. De fato, eu não tenho talento para a música. Da última vez em que a vi, Tia Phoebe disse: “Você está na profissão errada”.
Vou lhes dizer uma coisa: estar comprometido, como agora, com o compromisso, é muito curioso. Como disse Gertrude Stein: “There isn’t any there there”. [Não há nenhum lá, lá]. Se ao menos fosse uma pérola, eu poderia quebrar a cabeça e encontrá-la. Como disse Suzuki: Vivendo na cidade, não sei como poderá fazê-lo. Se vivesse no campo, você teria uma chance. E há o seu artigo intitulado Mãos. (Deixe que elas se sujem. E quem foi mesmo que falou de raízes – não só das raízes, mas da sujeira grudada nelas? Compare com as árvores mandadas pro Nebraska, que se recusaram a crescer, simplesmente porque limparam suas raízes.)


Fragmentos de “Miró na terceira pessoa: 8 proposições”

Expressando em uma palavra aquilo sobre o que sempre vinha insistindo, ele disse: Anima. Uns dias depois, quando eu lhe repeti a palavra, ficou intrigado; pareceu não entender o que eu estava dizendo. Contei isso a Duchamp. Duchamp foi enfático: Miró não fala latim; ele deve ter dito (sem pronunciar o g): Um image.

Este é o caminho: olhando em direção ao mar, onde está a ilha dele. “Eu faço isso com todo meu coração”. Caminho do quê? Catalunha. Ele se torna um jogador de xadrez árabe. (Visitando outra pessoa, a gente o visita. Mapas. Piada a Quatro do Rei.)

Espaço. Mesmo perto, há distância.

Vai pro Polo Norte? Então leve Miró consigo. “Parece-me que o conheço desde que nasci.” A guerra. Pinturas desconhecidas. Uma noite transcorrida em gargalhadas: omelete que caiu no chão.

Os signos estão completos (prontos para se tornarem uma coisa diferente do que são). Fogo. Ao vemos mudanças, não sabendo ainda esquecer.

“Você abre portas”. Estou certo de que ele sabe que elas são automáticas, fechando-se depois que a gente passa. Um jardineiro, ele é também um caçador, mesmo quando dorme: a terra remexida é receptiva a tudo que existe no ar: disseram-me que ele queria saber, ver o que estava acontecendo.

Pra ligar o amplificador, eu viro a esquina. Ele está olhando um Giacometti. Sozinho, não (está) sozinho. Conchas que têm a clave de fá fazem lembrar de música. Balé. O que será? Eu sou o primeiro a ficar surpreso. As coisas mais simples me dão ideias. Cegueira anônima: quatro de nós jogando xadrez; três estavam cometendo enganos.


Fragmentos de “Ritmo, etc.”

A rigor, nada há dizer sobre ritmo, porque não há tempo. Temos ainda de aprender os rudimentos, os meios úteis. Mas há mil razões para crer que isso vai acontecer, antes que os corpos fiquem inanimados. Quando eu vejo tudo que está à direita se assemelhar a tudo que está à esquerda, eu me sinto da mesma forma que eu me sinto em frente de algo em que não há nenhum centro de interesse. Atividade, negócio: – não daquele que o fez (suas intenções tinham se reduzido a quase nada) – talvez um grão de poeira.

Somos construídos simetricamente (com as habituais permissões para a imperfeição e a ignorância, com respeito ao que ocorre por dentro), e assim, vemos e ouvimos simetricamente, observamos que cada evento está no centro do campo em que nós-ele estamos. Não é apenas um ponto de vista democrático porque é igualmente aristocrático. Só objetamos quando alguém nos chama a atenção para algo que já estávamos em vias de ver. Ele mencionou o fato de ir pra trás ou pro lado, e combinou isso com a noção de progresso.

Para mudar de assunto. O que é que eu quero dizer quando falo: Ele não tem sentido-de-tempo? Não sabe pular de uma situação para outra nos momentos adequados? Por essa razão fizemos nossa obra experimental (imprevisível). a) Usamos operações ao acaso. Vendo que elas eram úteis somente onde havia uma limitação definida do número de possibilidades, b) usamos composição indeterminada em relação à sua execução (caracterizada em parte pela independência das partes de cada executante – sem partitura). Vendo que isso só era útil quando havia chance de conscientização da parte de cada executante, c) usamos execução indeterminada em si mesma.


Fragmentos de “Jasper Johns: estórias e ideias”

Todas as flores o deleitam. Ele acha mais pertinente que uma planta, depois de ficar verde desenvolve um talo e, na ponta, desabroche em cor, do que ele ter de preferir umas às outras. Dá a maior importância a plantar uma planta, se ela está fora da terra. Presenteado com bulbos do sul, impaciente por vê-los florescer, urdiu um plano para a sucessão acelerada de estações: colocá-los para resfriar no terraço e depois aquecê-los num forno. Todavia, não deixa que as flores morram no jardim. Elas são cortadas, e todas as variedades que estão florescendo estão reunidas em um bárbaro e único arranjo, quer sejam tiradas do jardim, da beira da estrada quer dos floristas: uma destas, duas daquelas etc. (Não se deixem enganar: o fato de ele ser um jardineiro não o exclui da caça; ele me disse ter encontrado a Lactarius azul nos bosques em Edisto.) Além de fazer pinturas que têm estruturas, fez outras que não têm nenhuma (por exemplo, Jubileu). Eu quero dizer que se duas pessoas tivessem de dizer qual a divisão em partes daquele retângulo, diriam duas coisas diferentes. As palavras que designam cores e o fato de que uma palavra não é apropriadamente colorida (“Você é o único pintor que eu conheço que não distingue uma cor da outra”), exercitam nossas faculdades, mas não dividem a superfície em partes. Em outras palavras, a gente vê um mapa cujas fronteiras foram obscurecidas (de fato, não havia nenhum mapa); ou poderíamos dizer que a gente vê o campo abaixo da bandeira: a bandeira, que antes estava em cima, foi removida. Estupidamente, pensamos em expressionismo abstrato. Mas aqui estamos livres da luta, do gesto e da imagem pessoal. Olhar de perto ajuda, embora a tinta esteja aplicada tão sensualmente que a gente corre o risco de se apaixonar.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A poesia-relâmpago de Khlébnikov

Por André Dick

A Rússia foi sempre um país privilegiado em matéria de cultura, apresentando, por exemplo, grandes poetas. Entre eles, está o nome de Vielimir Khlébnikov, o poeta do “travesseiro”, cuja obra está inserida, com certeza, na lista das maiores da modernidade. Pouco conhecida, em relação a à de Maiakóvski – visto como o grande poeta russo, o mais representativo –, a poesia de Khlébnikov se caracteriza pela universalidade e pela experimentação de linguagem, tão bem sintetizadas por Augusto de Campos no ensaio “O Colombo dos novos continentes poéticos”, de À margem da margem.


Nascido na aldeia de Tundúvoto, do governo de Astrakan, na Rússia, em 1895, Khlébnikov era filho de pai ornitologista de uma mãe que apreciava música, história e literatura. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, estudou Física, Matemática e Ciências Naturais. Também aprendeu sânscrito na Faculdade de Línguas Orientais e se transferiu para a área de Letras, a fim de estudar Eslavística.
Para o poeta Assiéiev, ele “era semelhante em espécie a um passarinho pensativo com as longas mãos e com o hábito de descansar sobre um pé, com seu olho atento, com suas migrações imprevistas e as precipitações do espaço e as fugas para o futuro”. Mais preocupado em imigrar para diversos lugares, obedecendo às mudanças de estação, o poeta, não demonstrava interesse em publicar seus poemas, a fim de compor uma obra.
Era preciso que seus amigos escolhessem, dentre as pilhas de rascunhos relegados ao provável esquecimento, aqueles poemas que seriam publicados.
O poeta Vladimir Maiakóvski dizia se espantar com o trabalho de Khlébnikov. Segundo ele, o quarto do poeta “era vazio de mobília e vivia abarrotado de cadernos, frases soltas e pedacinhos de papel, cobertos de sua letra miudinha”. Se alguém não extraía de suas pilhas de poemas algum para imprimir, o poeta russo, antes de partir em viagem, enchia uma fronha com os manuscritos. Nas viagens, dormia sobre esse travesseiro - e acabava por perdê-lo.


Nesse sentido, interessante a reflexão de Murilo Mendes sobre o poeta russo, no fabuloso Retratos-relâmpago, a qual vale a pena ser reproduzida por completo:

Sonha por dentro e por fora. Carrega a mochila das onomatopoesias em ásperos caminhos da Rússia e do autocosmo. Alimenta-se de várias eternidades. Oscila entre o tempo neolítico e o da revolução de outubro. Contesta os hábitos do universo. Rejeita (mesmo disfarçada) a garra do sistema. Recusa-se a ser condicionado e teleguiado. Depende da estrela e da uva, mas toma-as como figuras subjetivas. Passa fome, fome igual a programa e manifesto. Não pousa em parte alguma. Julga o autostop cômodo demais. Não vêm no jornal. Irmão separado dos homens, “sacerdote das flores”, monge leigo, investiga através da solidão a luz das suas letras e das suas palavras geminadas, o alfabeto original. Adia o acontecimento, provoca a ruptura. Sobe as escadas descendo. Nunca chega, sempre volta. Do alto e do baixo. Persegue a música do enigma. É iluminado pela interrogação, explicado pelo tremor da terra, mantido pelo absoluto. Antiaristotélico, segue a flecha de Aristóteles: “saber encontrar belas metáforas significa descobrir as semelhanças entre as coisas”; mas vira em direção contrária, isto é, através da metáfora fixa o dissenso das coisas. Talvez tenha nascido sob o signo da palavra-relâmpago “aussitôt que l’idée du déluge se fuit rassise”, mas não é Rimbaud nº 2, sim Vielimir Khliébnikov 1º e único. Manifesta-se o super hippy, o superguru sem teto, bússola nem máquina. Nomeia-se estátua de comendador, para comprimir, diz, na mão de pedra os poemas refratários, e presidente do globo terrestre, para acabar, diz, com os “grandes”; mas sem arma, séquito ou petróleo, superexprime a distância das analogias, a guerra das categorias, a aversão às ideologias. Faz explodir o surrealismo da natureza e a instantaneidade do futuro.


Fala-se que a criação do futurismo se deve a Khlébnikov. No entanto, o poeta russo, além de nunca ter tentado publicar seus trabalhos, muito menos quis organizar movimentos. Claro que por meio da linguagem “zaúm” (a linguagem transmental), em que vocábulos eram criados com o propósito de alcançar novas sonorizações – encontradas nos poemas ao final deste artigo – e que ajudou a moldar, Khlébnikov ficou mais próximo do ideal futurista, mas é impossível afirmar que o poeta pretendia pertencer a uma corrente poética de vanguarda ou coisa similar.
Conforme Krystina Pomorska, em Formalismo e futurismo:

O conceito de zaúm de Khlébnikov não pressupõe de modo algum uma linguagem sem sentido. Como Biéli, ele advogou a revivescência de uma linguagem automatizada, a fim de restabelecer o contato perdido entre signo e referente (...) Um dos modos possíveis de fazer isso é revitalizar raízes arcaicas, acrescentando-lhes novos afixos. Ou a justaposição de radicais cuja etimologia comum em geral se perdeu.

Tal linguagem “atuaria de acordo com os mesmos poderes da linguagem dos sortilégios das fórmulas cabalísticas ou da liturgia religiosa: a audiência não compreende o significado das palavras, mas elas influenciam os seus sentimentos e a sua imaginação”.

Segundo Boris Schnaiderman, a

língua transmental (zaúm) era para ele algo bem concreto e preciso; os sons aglutinados não eram fortuitos, embora estivessem desligados do conceito habitual. A linguagem dos feiticeiros, dos xamãs da Ásia Central; a montagem e desmontagem das palavras; a transformação de nomes próprios em verbos, de substantivos em adjetivos e vice-versa; o registro dos pássaros, a formação de palavras nas línguas eslavas em geral – eis alguns dos recursos de que se serviu. Muito antes dos surrealistas já prenunciava a chamada escrita automática. Superando as limitações de espaço e tempo, antecipou em certo sentido o dadaísmo. Seus caligramas são anteriores aos de Apollinaire, e suas montagens de palavras efetuam-se na mesma época que as de Joyce.

Admirador do Simbolismo, segundo Pomorska, Khlébnikov “foi ao mesmo tempo o continuador da tradição e o ponto de partida para todos os tipos de poesia futurista”. Já para Jakobson, em A geração que esbanjou seus poetas, foi quem nos deu um novo gênero épico, as primeiras criações autenticamente épicas depois de muitas décadas de estagnação. Até mesmo seus poemas curtos, fundidos sem esforço aos poemas narrativos, produzem o efeito de fragmentos de epopeia. Khlébnikov é épico apesar desses tempos antiépicos, sendo essa uma das explicações para o efeito de estranhamento que sua obra causa sobre o leitor.


Seu objetivo era realizar poesia, seja em poemas de risco, com a linguagem “zaúm”, seja em poemas de tradição simbolista. Como escreve Boris Schnaiderman, no artigo “O mundo precisa de Khlébnikov”, “sua linguagem é a mais despojada de literatice, a mais arrojada, a mais próxima do genuíno espírito da língua”. Desse modo, para Schnaiderman, ele é um precursor: “Antes que Joyce amadurecesse a sua extraordinária revolução na linguagem literária, Khlébnikov já publicava poemas em que são evidentes os elementos pré-joyceanos. Antes que dadaístas e surrealistas expusessem preto no branco a sua subversão dos valores consagrados em arte e literatura, Khlébnikov já fazia pré-dadaísmo e pré-surrealismo”.
Os últimos anos do poeta, no entanto, foram conturbados. Aventureiro, Khlébnikov prestou serviço militar na infantaria russa na guerra de 14. Durante a Guerra Civil, foi preso como espião, indo parar num hospital psiquiátrico. Entre 1918 e 1920, viveu num quarto frio e sem luz, faltando a ele roupa e comida. Adoeceu de tifo por duas vezes. Em 1920, trabalhou na Agência Telegráfica de Cáucaso, para, no ano seguinte, partir em direção à Pérsia com o Exército Vermelho.
Na volta à Rússia, arranjou trabalho como guarda-noturno na Agência Rosta, pois tinha de se alimentar, e em 1921 partiu para Moscou, num vagão de epiléticos. Khlébnikov acabou por morrer na aldeia de Santalovo, governo de Nóvgorod, em 1922, ano em que Mário e Oswald de Andrade estavam à frente da Semana de Arte Moderna, em São Paulo.
Irritado com as publicações que reconheciam a obra de Khlébnikov após sua morte – em vida o poeta foi perseguido pelo regime stalinista, que proíbe qualquer discordância ou ideais que não estejam em seus planos –, Maiakóvski pediu: “Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!”. Khlébnikov que, dentre seus muitos sonhos e profecias, pretendia criar uma sociedade de presidentes do Globo Terrestre (com poetas, filósofos, sábios, revolucionários) que governaria o mundo, talvez não se interessasse em ser lembrado, talvez porque soubesse, antes de mais nada, que sua poesia era constituída de inteligência e visão literária, e, dia menos dia, seria lembrada.


Tanto quanto sua poesia, a faceta voltada a ideias revolucionárias de Khlébnikov era bastante imaginária – o motivo de ter sido tão rechaçado por Stálin, que não admitia posicionamentos contrários aos seus. Como diz Barthes, quando analisa a “escrita stalinista”, em O grau zero da escritura, ela quer dar “o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura imediata das condenações: o conteúdo objetivo da palavra ‘desviacionista’ é de ordem penal. Se dois ‘desviacionistas’ se reúnem, passam a ser ‘fraccionistas’, o que não corresponde a uma falta objetivamente diferente, mas a um agravamento da penalidade”. Uma escrita autoritária como a de Stálin “tem como missão fazer coincidir fraudulentamente a origem do fato e a sua manifestação mais longínqua, dando à justificação do ato a caução de sua realidade”. Tal escrita, lembra Barthes, é “própria a todos os regimes autoritários; é o que poderia se chamar de escrita policial: conhece-se, por exemplo, o conteúdo eternamente repressivo da palavra ‘Ordem’”. Por isso, os stalinistas rechaçam qualquer opinião discordante – e por isso combatem tanto os poetas, instituindo uma vigilância policial.
O que fica não é o discurso stalinista, e sim a obra de quem ele perseguiu, no caso a de, entre outros, Khlébnikov. Em 1928, saiu uma edição da obra do poeta na Rússia, com cinco volumes, que seria completada por inéditos em 1940. No Brasil, vale a pena conferir as obras Ka (com tradução de Aurora Fornoni Bernardini) e Poesia russa moderna (em que há ótimas traduções do russo para o português pelas mãos de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman). Um dos maiores estudiosos atuais do poeta é Mário Ramos Francisco, que traduziu o seu longo poema Zanguézi. Abaixo, uma pequena seleção (feita com a colaboração de Nicole Cristofalo) dos poemas de Khlébnikov, traduzidos por Augusto de Campos, Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos. Ela mostra um pouco da “poesia-relâmpago” (para evocar Murilo) do poeta russo.

O GRILO

Aleteando com a ourografia
Das veias finíssimas
O grilo
Enche o grill do ventre-silo
Com muitas gramas e talos de ribeira.
– Pin, pin, pin! – taramela o zinziber.
Oh, cisnencanto!
Oh, ilumínios!

(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

*
Tempos-juncos
            Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
            No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
            Santos, juntos.

(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)


*

Bobeóbi cantar de lábios,
Lheeómi cantar de olhos,
Cieeo cantar de cílios,
Stioeei cantar do rosto
Gri-gsi-gseo o grilhão cantante.
Assim no bastidor dessas correspondências
Transespaço vivia o semblante.

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A água é espelho móvel,
Estrelas – redes; nós – os peixes;
Visões da treva – os deuses.

(Tradução de Augusto de Campos)

*
Uma vez mais, uma vez mais
Sou pra você
Uma estrela.
Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.

(Tradução de Augusto de Campos)

*

ENCANTAÇÃO PELO RISO

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Neste dia de ursos cerúleos
a correr sobre dias tranquilos
transvejo para além da água azul
o acordar na taça das pupilas.

Na colher de prata de olhos latos
vejo a procelária em mar sonoro
e ao largo vai a rússia dos pássaros
transvoando entrecílios ignotos.

Marventoso em celamor soçobra
a vela de alguém na azul esfera,
e eis que o desespero tudo engolfa
trovão e porvir de primavera.

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercancia.

(Tradução de Augusto de Campos)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A vanguarda primitiva de Oswald de Andrade (I)

Por André Dick

A Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade era a síntese do contato de Oswald tanto com a vanguarda europeia quanto com Blaise Cendrars, poeta francês, grande amigo seu. Mas não apena isso. Como analisa Benedito Nunes, na obra A utopia antropofágica, “o ideal do Manifesto da Poesia Pau Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação ética do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, ‘o melhor de nossa tradição lírica’ com ‘o melhor de nossa construção moderna’”. É exatamente o que pretendia Oswald em seu texto “A crise da filosofia messiânica”, em que escrevia que a tese era o “homem natural”, a antítese o “homem civilizado” e a síntese o “homem natural tecnizado”.


Foi na primeira metade do ano de 1925 que Oswald aproveitou para rever e preparar a publicação do Pau Brasil, na França. Àquela altura, já estava plenamente acostumado com o universo parisiense. Universo que abrigou tantos outros gênios da poesia, como Rimbaud, Apollinaire, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e mestres da pintura, entre eles, Picasso, o mestre do Cubismo, apoiado por Apollinaire, criador dos Caligramas.
Acabou por lançar a obra naquele ano mesmo. Ao mesmo tempo que era lançado no Brasil, o livro de poemas era publicado, entre agosto e setembro, pela Editora Au Sans Pareil, por interferência de Cendrars e por um amigo deste, René Hilsum. No catálogo dessa editora, famosa em Paris, Oswald tinha gigantes da vanguarda ao seu lado, entre os quais Apollinaire, Max Jacob, Tristan Tzara, pertencente ao movimento dadaísta, e o próprio Cendrars.
O livro Pau Brasil acabou sendo dedicado “A Blaise Cendrars, por ocasião da descoberta do Brasil”, trazendo uma verdadeira revolução, como prometia seu manifesto, na arte de fazer poemas, desestruturando todas as normas sintáticas, constituindo-se numa espécie de divisor de águas no modernismo da poesia brasileira.


Maria Eugenia Boaventura observa muito bem as transformações empregadas por Oswald através dessa obra, em seu livro O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade, no seguinte trecho:

“Pau Brasil”, “iluminado” por Tarsila e anunciado como “cancioneiro” revolucionou também graficamente. Ilustrações e capa de Tarsila fizeram as vezes de uma coreografia, em parceria perfeita com a ingenuidade e o primitivismo da linguagem Pau Brasil. A ousadia do projeto gráfico, sobretudo, causou espanto e atuou como uma espécie de síntese plástica do livro.

No Rio de Janeiro, o livro de Oswald teve uma ótima acolhida, mas houve quem não gostasse das invenções e atrevimentos propostos pela poesia Pau Brasil. Os críticos mais ferrenhos eram, sem dúvida, Tristão de Athayde e Manuel Bandeira. O primeiro concluía o seguinte sobre o livro de Oswald:

O que pretendeu (...), o sr. Oswald de Andrade e o grupo de seus admiradores, é abolir todo o esforço poético no sentido da lógica da beleza da construção e nadar no instintivo, na bobagem, na mediocridade. Exaltar a vulgaridade. Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos cafés. Curvar o joelho diante de todos os prosaísmos. Voltar ao bárbaro ou deleitar-se no suburbano.

Por sua vez, Manuel Bandeira ironizou diversas vezes o nome do manifesto e do livro de Oswald, afirmando que não existia mais o Pau-Brasil em nossas terras. Afirmava mais sobre o livro de Oswald: “O seu primitivismo é apenas uma fórmula pindorâmica de um anseio europeu, cuja degeneração foi expressa no dadaísmo francês e no expressionismo alemão”.

 
Bandeira afirma que o programa de Oswald “é ser brasileiro”. E ainda atesta: “Aborreço os poetas que se lembram da nacionalidade quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça. Quero ser eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de falar ainda na Grécia”. Bandeira não entendeu a antropofagia que já se manifestava no Manifesto da Poesia Pau Brasil, ao afirmar que o manifesto oswaldiano era “nacionalista”. O mesmo quando afirma que Oswald se faz de futurista e, ao mesmo tempo, escreve, em Memórias sentimentais, “cartas, diálogos e discursos que são um decalque servil de uma realidade cotidianíssima”. E, com um ataque ferino, escreve: “O seu primitivismo consiste em plantar bananeiras e pôr de cócoras embaixo dois ou três negros tirados da Antologia do sr. Blaise Cendrars”. Naturalmente, a visão de Bandeira é muito redutora. Oswald traz o desejo de exportar poesia, como se pudéssemos prover quem é devorado, não no sentido de servirmos ao estrangeiro, mas buscando um diálogo aberto de culturas, nada mais antinacionalista.
Outros nomes, como Mário de Andrade e Paulo Prado, que assina o prefácio do livro, obviamente apoiaram. Alguns, como Carlos Drummond de Andrade, ficaram entre o elogio e a denúncia da pobreza de excessos, ou seja, a tentativa de Oswald realizar uma obra caracterizada não essencialmente pela técnica, mas pelo estilo sintético, cujo encadeamento dos poemas conta com cortes constantes nos versos.
No livro Pau Brasil, Oswald de Andrade está à procura de uma linguagem primitiva, buscada por todas as vanguardas do início do século XX. Daí, a necessidade de Oswald considerar, no Manifesto da Poesia Pau Brasil, que “a poesia está nos fatos”. Como observa Benedito Nunes, “o primitivismo correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o século XX, encurvando a sensibilidade moderna menos na direção da arte primitiva propriamente dita do que no rumo, por essa arte apontado, em decorrência do choque que a sua descoberta produziu na cultura europeia, do ‘pensamento selvagem’ - pensamento mito-poético, que participa da lógica do imaginário, e o que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado”.
Condicionado por essa linha de raciocínio, Oswald pende tanto para o primitivismo da natureza psicológica quanto para o primitivismo da forma, que Apollinaire explorou tão bem, em seus memoráveis Caligramas. Ao mesmo tempo, Oswald associa, nos poemas de sua obra, uma exaltação futurista da vida urbana, através do enfoque de grandes meios urbanos, às manifestações de uma nova lírica e de um espírito novo de poesia. Assim, a poesia Pau Brasil realiza uma espécie de “volta ao material”, que coincide com a volta a sentido puro e à inocência construtiva da arte.


A poesia Pau Brasil, consequentemente, possui um estilo sintético como o do Cubismo. A invenção das formas marcam a sua inocência construtiva, materializando-se, como é sua pretensão, expressa no manifesto, “ágil e cândida”, na sua volta ao sentido puro de todas as artes, a uma pureza que está concentrada no fato de reduzir o poema uma condição mais material, onde se privilegia a síntese verbal e a melancolia. Essa melancolia, apurada por Oswald em seus poemas do Pau Brasil, mostra que o artista precisa, novamente recorrendo a preceitos do manifesto, aprender a ver com olhos livres. Isso fica claro no poema “3 de maio”, talvez o mais conhecido dessa obra de Oswald, onde o poeta busca uma aproximação da infância, com sensibilidade e apego:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

Ou em “Black-out”, incluído em Cântico dos cânticos para flauta e violão:

Girafas tripulantes
Em paraquedas
A mão do jaburu
Roda a mulher que chora
O leão dá trezentos mil rugidos
Por minuto
O tigre não é mais fera
Nem borboletas
Nem açucenas
A carne apenas
Das anêmonas

O discurso de Oswald se situa, como o de Agamben, num ponto que navega entre a infância e o que resta da infância no universo adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar, explorando como Benjamin, o universo infantil. O adulto, para Oswald e Agamben, perdeu a magia do rito, da magia, do profanável – sobretudo quando se entrega ao capitalismo (não devemos esquecer que Oswald era um marxista até determinada altura, mas depois, como outros grandes autores, tornou-se crítico de suas premissas). Saindo desse universo, parece restar o juízo final que Agamben enxerga nas fotografias ou na exploração da tragédia, como avalia em “O dia do juízo”: “A fotografia é para mim, de algum modo, o lugar do Juízo Universal; ela representa o mundo assim como aparece no último dia, no Dia da Cólera”; “Graças à objetiva fotográfica, o gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida interior; aquela atitude irrelevante, até mesmo boba, compendia e resume em si o sentido de toda uma existência”.
Toda essa remissão à infância é trabalhada com fôlego em Infância e história, em ensaios como “O país dos brinquedos” e “Fábula e história”; em ensaios como “Magia e felicidade”, “Genius” e “Os ajudantes”, de Profanações. Nesse sentido, Oswald, como Agamben, é um filósofo da infância, como se apresentou Benjamin em alguns de seus textos, a exemplo de “Livros infantis antigos e esquecidos”, “História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”, os quais o italiano explora e complementa. A infância, afinal, é o início da profanação da linguagem, ou seja, de sua descoberta, principalmente poética. Afinal, diz Agamben, “a linguagem é nossa voz, a nossa linguagem. Como agora falas, isto é a ética”. E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma existência. Por isso, não há como acompanhar a crítica de Tristão de Athayde, quando diz que, em Pau Brasil, Oswald quis “Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos cafés”.


O que se destaca em Oswald – como Agamben – é sua predileção por uma certa infância da linguagem, ideia extraída não só dos românticos e dos seus sucessores - Benjamin afirmava que o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua figura uma representação dessa infância a que Agamben se refere -, que coloca a vida como um jogo entre rito e linguagem. No último texto de Profanações, em que ganha relevo essa visualização benjaminiana, a profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben, pois, em Infância e história, ele já recorria a essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto. Essa permanência da infância é a mais clara presença da melancolia.
Assim, por meio dessa obra que visualiza a Poesia Pau Brasil destruiu, com talento, parte do academicismo dominante, mesmo após a Semana de Arte Moderna, por meio de um estilo imprevisível àquela época. Era uma poesia ao mesmo tempo primitiva, ácida e bem-humorada. Fazendo referências a outros textos e a situações da história do Brasil, indicava a existência clara de um poeta radical, em busca de uma linguagem adequada ao seu tempo – mas profundamente imbuída em recuperar o passado, na clareza e na objetividade seus maiores atributos. Uma poesia que, como Paulo Prado colocava no prefácio do livro de Oswald, “era obtida em comprimidos, em minutos”. Dividido em nove partes (“História do Brasil”, “Poemas da colonização”, “São Martinho”, “rp 1”, “Carnaval”, “Secretário dos Amantes”, “Postes da Light”, “Roteiro das Minas” e “Lóide brasileiro”), o livro de poemas Pau Brasil já inicia com um exemplo de poesia sintética, “Escapulário”:

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A poesia
De Cada dia
A vanguarda primitiva de Oswald de Andrade (II)

Por André Dick

Esta poesia, baseada numa linguagem primitiva – no sentido de originária, infantil –, busca nos fatos, como afirmava um dos tópicos do manifesto, a razão para a poesia – e os fatos eram, sobretudo, voltados ao passado. Na primeira parte de Pau Brasil, Oswald recorta momentos da história brasileira com uma dose peculiar de sátira. Nos poemas “A descoberta” e “As meninas da Gare”, por exemplo, o poeta brinca com trechos da “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha. Já em “Riquezas naturais”, Oswald brinca com a própria língua portuguesa arcaica, abolindo a sintaxe clássica e as vírgulas. Seu intuito, claro, é soar um “homem natural tecnizado”, como escreve em “A crise da filosofia messiânica”:

Muitos metaes pepinos romans e figos
De muitas castas
Cidras limões e laranjas
Uma infinidade
Muitas cannas daçucre
Infinito algodam
Também há muito paobrasil
Nestas capitanias


Inserido nesse primitivismo, estão todas as vanguardas e a velocidade do mundo moderno. A velocidade do poema, tão prestigiada pelo Futurismo de Marinetti, encontra respaldo no seguinte fragmento do poema “Versos de Dona Carrie”, cujo encadeamento, além de rápido, indica o crescimento urbano inevitável:

A neblina nos segue como um convidado
Mas há um clarão para as bandas de Loreto
Cafezais
Cidades
Que a Paulista recorta
Coroa colhe e esparrama em safras
A nova poesia anda em Godofredo
Que nos espera em Forde

Em “Poemas da colonização”, o poeta se volta para o interior, para o passado, melancolicamente, identificando a repetição dos ciclos, e recorta, baseado em imagens claras e buscando versos sintéticos, o universo, sobretudo, rural, cafeeiro, como fica claro no poema “A transação”, de “Poemas da colonização”:

O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros das pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café

Os versos finais merecem destaque: “Por terras imaginárias / Onde nasceria a lavoura verde do café” – ou seja, terras que passam a inexistir para o sujeito.


Oswald busca, paralelamente, visando novamente ao “homem natural tecnizado”, a imaginação cinematográfica do início do século XX, quando o cinema ainda era uma indústria em crescimento e, para muitos, uma incógnita. Oswald, em poemas como “O capoeira”, abaixo, utiliza uma colagem de versos quase cinematográfica:

- Qué apanhá, sordado?
- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada

A mesma característica se insere no poema “Walzertraum”, da seção “rp. 1”, cujo fragmento pode ser lido abaixo, onde o poeta busca uma colagem de versos como Tristan Tzara promovia sua técnica de recortar figuras para formar uma obra dadaísta:

Aqui dá arroz
Feijão batata
Leitão e patarata
Passam 18 trens por dia
Fora os extraordinários
E o trem leiteiro
Que leva leite para todos os bebês do Rio de Janeiro
Apitos antigos apitam
Sentimentalmente
Eu gosto dos santuários
Das viagens

Enquanto a parte “Secretário dos Amantes” brinca com a linguagem lírica romântica, a seção “Postes da Light” possui um poema em especial que brinca com a disposição gráfica das palavras e é especialmente radical no contexto da poesia daquela época, intitulado “A Europa curvou-se ante o Brasil”, cujo encadeamento de versos é feito com resultados de partidas de futebol e, ao final, tenta vingar-se de Portugal indiretamente. No entanto, a maneira como Oswald inscreve o poema é infantil, lembrando marcações num diário.

7 a 2
3 a 1
A injustiça de Cette
4 x 0
2 x 1
2 x 0
3 x 1
E meia dúzia na cabeça dos portugueses

Por isso, também, a melancolia oswaldiana está ligada àquela infância de que trata Agamben em Infância e história.


Em seu estudo sobre Oswald, “Marco zero de Andrade” (de Contracomunicação), Décio Pignatari dá pistas para compreender Oswald. Para ele, Oswald não tem, como Mário de Andrade e alguns outros, o objetivo de criar uma “língua brasileira”. Tem, sim, a necessidade de expor o “sentido puro mediante a inocência construtiva”. Seu processo criativo consistiria num “processo de seleção do já existente, no momento ou na memória. Recorte, colagem, montagem. Antiliterariamente. O processo documentário”, que pode ser ligado ao próprio dadaísmo.
Assinala que o selvagem (ou o índio), revelou a “visão de uma nova moral, não cristã, e de uma nova linguagem, direta, ideogrâmica” (Pignatari compara o movimento ao de Pound em relação a Confúcio), o que fez com que nunca quisesse utilizar da língua ou da literatura tupi “para efeitos estilísticos ou formais”. O tupi de Oswald, porém, conforme observa Benedito Nunes, no artigo “Do tabu ao totem”, “não era de nenhuma raça, e, sim, o primitivo irredento, a contraprova de de uma anti-história dentro da história – um membro da horda freudiana, um salto exemplar da ancestral nebulosa do ‘pensamento selvagem’, ser cultural à margem de uma sociedade a que pertencia e olhando-a distanciadamente, com o fulgor da estranheza crítica”.

Segundo Pignatari, Oswald, por se colocar contra a sociedade de uma maneira geral, mesmo sendo de origem burguesa, nunca conseguiu efetivar realmente uma carreira literária, fazendo com que muitos desconfiassem de que sua obra fosse amadora.


Não que Pignatari esteja certo, ao afirmar, por exemplo, que Mário de Andrade descartava o futurismo (do qual bebeu, de um modo ou de outro, em seu Pauliceia desvairada), mas foi Oswald que valorizou as artes visuais, o movimento cubista – seu romance Memórias sentimentais de João Miramar é um exemplo claro de tal influência – e, para salientar novamente, o dadaísmo, que esteve ligado diretamente à pop art norte-americana de Marcel Duchamp e seus ready-mades. Pignatari acerta ao afirmar que a poesia de Oswald é “a poesia da posse contra a propriedade”, com “versos que não eram versos”, pondo em crise o próprio verso, como Mallarmé: “Alguns poemas são simples transcriações de anúncios de época. Destacados do contexto, os textos adquirem novo conteúdo: de lugares-comuns se transformam em lugares incomuns”, captando um dos momentos altos do cenário de São Paulo. Ocorre uma desautomatização da linguagem, incentivada, aliás, pelos formalistas. Pignatari compara Sousândrade com Oswald. Ambos, para Pignatari, não ficaram esperando “pelo beneplácito dos deuses da cultura mundial para produzir obras originais, destinadas ao confronto e ao julgamento internacional”. Ou seja, cada um deles, a seu modo, “deglutiu o avião, anticolonialmente, e produziu, de fato, uma poesia de exportação”.
Oswald vislumbrava, como poucos poetas, o outro: “Só me interessa o que não é meu”, provocação a ponto de suscitar o primeiro lance de alteridade assumida de nossa literatura, mas nunca visto pelo ângulo da acusação de que não podemos cultivar nossa literatura a partir de outra em razão de que estaríamos aceitando nossa condição de “subdesenvolvidos”, ignorada por Octavio Paz, mas apoiada por alguns críticos brasileiros.


Oswald já realizava o que Paz afirma no ensaio “Os signos em rotação”: “A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade” (“outridade”, vale assinalar, é um termo que se espalha ao longo de O arco e a lira, sempre sob o mesmo ângulo da alteridade, que é quando o “homem se realiza ou se completa quando se torna outro”, quando “a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser o que somos, e que, sem deixarmos de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte”, no momento tanto da leitura quanto da escritura, dominado pela sensação de transcendência crítica e pensada). Benedito destaca, no artigo “Do tabu ao totem”, que “Quando nos mírassemos no espelho do estrangeiro, passaríamos a estranhar-nos e a descobrir nossa originalidade nativa”, convertendo-se a assimilação “numa atitude devoradora generalizada”, comeríamos “nossa herança cultural ambígua com suas reservas inconscientes de imaginário, poeticamente transladáveis, e também com seu imenso poder repressor, que aliou a catequese aos Governos Gerais”. Com todos esses exemplos e revisão histórica, nunca é demais lembrar que Oswald de Andrade, antes de ser modernista, é um poeta contemporâneo, sintonizado com o mundo atual no que ele tem de procura por uma ética da linguagem, um dos responsáveis diretos pela existência atual de uma poesia brasileira voltada para um lirismo comedido e calculadamente triste, do qual já tratamos em “A melancolia antropófaga de Oswald”.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A floresta íngreme de Georg Trakl (I)

Por Nicole Cristofalo e André Dick

Nascido em 1887, em Salzburgo, e desaparecido em 1914, na Cracóvia, Georg Trakl é considerado um dos mais importantes poetas expressionistas – figura certamente ao lado de August Stramm. Em A verdade da poesia, Michael Hamburger afirma que Trakl não “foi deliberadamente um poeta modernista nem experimental como seu contemporâneo mais velho, August Stramm”. Em Poesia expressionista alemã, Cláudia Cavalcanti considera que a poesia dele “não é programática, revolucionária ou engajada; é antes uma poesia de lamento, elegíaca”. No entanto, é ainda, da floresta íngreme alemã, o poeta mais representativo.


Na sua coletânea publicada no Brasil pela editora Iluminuras, De profundis, a tradutora Cláudia Cavalcanti comenta, no posfácio (“Emergir das profundezas de G.T.: uma tentativa”), que ele “nascera no seio de uma família abastada e protestante, na provinciana e católica Salzburgo”, sendo “o quarto de seis irmãos”. A morte de seu pai, um mês antes de se formar como farmacêutico, em Viena, 1910, “foi um grande choque para aquele cuja mãe sempre fizera questão de se manter afastada dos filhos [...], além de ter significado um abalo na estrutura financeira da família”. Mesmo antes, salienta Cavalcanti, Trakl já “enveredara por uma vida boêmia, voltada para o álcool e as prostitutas, mas sobretudo para as drogas, que conseguira pela primeira vez através de um amigo, filho de farmacêutico e depois, evidentemente, graças às facilidades que lhe proporcionavam a profissão”. Mas sempre, acima de tudo, manteve uma relação conturbada com a irmã, Grete, a quem dedicou diversos poemas.
O poeta teve grande proximidade de Ludwig Wittgenstein. André Vallias transcreve sete dias consecutivos do Diário Secreto, que Wittgenstein escreveu de 1914 a 1916, no texto “Canto dum melro em cativeiro”, dedicado ao poeta, na revista Cacto (nº 4), assim como poemas e cartas de Trakl(citados ao longo desse texto). Essas anotações, conforme Vallias, “dão conta da intensa e torturada reflexão existencial que acompanha a gestação do Tractatus Logico-Philosophicus”.


Como conta Vallias, Wittgenstein, que herdara uma fortuna, escreveu ao editor da revista Der Brenner, Ludwig von Ficker, afirmando que gostaria de depositar em sua conta 100.000 coroas e pedindo que as distribuísse entre “artistas austríacos necessitados”. Um dos agraciados foi justamente Trakl. No entanto, prossegue Vallias, a quantidade depositada em sua conta não alterou o curso de sua história: “Quando a guerra finalmente eclode, em agosto de 1914, Trakl se alista como voluntário. Wittgstein fará o mesmo”.
Para Vallias, ambos estavam mais próximos do que se imaginava: compartilhavam admiração por autores como Dostoiévski e Tolstói, além da “mesma exasperação pela pureza da linguagem e do caráter; a dificuldade de comunicação com seus iguais; o desprezo pelas convenções sociais; e o tormento dos escrúpulos morais”.
Prossegue Vallias:

No início de outubro, Georg Trakl será encaminhado ao Hospital de Guarnição, em Cracóvia. Extremamente deprimido, tentara se matar no front, após vivenciar, mais próximo do que podia suportar, os horrores da guerra. Como farmacêutico, fora destacado para cuidar sozinho de um grupo de 90 soldados gravemente feridos, largados num paiol. Do lado de fora, pendiam dezenas de camponeses rutenos, enforcados pelo exército austríaco, acusados de colaboração com os russos.
Em 25 de outubro, Ludwig von Ficker visita o poeta no hospital e informa-lhe que Wittgenstein encontrava-se não muito distante. O filósofo servia num navio de guerra que subia o rio Danúbio, em direção a Cracóvia.

Esses 90 feridos eram da batalha de Grodek, na Galícia. Trakl fez um poema, aliás, intitulado “Grodek” (vejamos na tradução de André Vallias), no qual vislumbra a irmã, Grete, em determinado verso, mas sobretudo o horror da guerra:

À tarde soam as matas de outono
De armas mortais, as planícies douradas
E lagos azuis, por onde o sol
Rola sombrio; a noite ronda guerreiros
Em agonia, o clamor feroz
De suas bocas destroçadas.
Porém mudas, no chão do pasto, juntam
As nuvens vermelhas, onde um deus em fúria
Mora no sangue vertido, o frio lunar;
Todas as estradas desembocam em negra podridão.
Sob os ramos dourados da noite e sob estrelas
Oscila a sombra da irmã por entre o silente arvoredo,
A saudar o espírito dos heróis, as frontes sangrando;
E suave soam no junco as flautas escuras do outono.
Ó tão altivo luto! altares brônzeos,
À ardente chama do espírito hoje alimenta uma dor atroz:
Os netos não nascidos.


Trakl escreveria a Wittgenstein, de Cracóvia, em 26 ou 27 de outubro de 1914:

Prezado Senhor!
Ser-lhe-ia imensamente grato se me concedesse a honra de uma visita. Estou temporariamente, há 14 dias, no enorme Hospital de Guarnição, no quinto setor de doentes psíquicos e nervosos. É provável que receba alta nos próximos dias, par retornar ao campo de batalha. Enquanto não se decide a respeito, gostaria muito de lhe falar.
Com as melhores saudações, seu devotado Georg Trakl.

É por meio do Diário Secreto de Wittgenstein que percebemos sua admiração por Trakl. No dia 5 de novembro de 1914, ele escreve:

Seguindo cedo para Cracóvia, aonde deveremos chegar no meio da noite. Estou muito ansioso para saber se irei encontrar-me com Trakl. Espero muito. Sinto muito a falta de alguém com quem possa conversar um pouco.

Já no dia seguinte, escreve:

Cedo à cidade, rumo ao Hospital de Guarnição. Lá, fui informado de que Trakl morrera há poucos dias. Fiquei muito abalado. Que tristeza, que tristeza!!!

Trakl havia morrido de overdose de cocaína. Dele, Wittgenstein diria: “Não entendo a poesia de Trakl, mas me deslumbra, e não há nada que me dê melhor a ideia de gênio”.


Em 24 de outubro de 1914, Trakl havia escrito numa carta a Ludwig von Ficker:

Caríssimo e prezado amigo!
Aqui seguem os manuscritos dos dois poemas que lhe havia prometido. Desde sua visita ao hospital, meu estado tornou-se duplamente infeliz. Já me sinto quase fora do mundo.
Por último, gostaria de acrescentar que, em caso de meu falecimento, é meu desejo e vontade que tudo o que tenho de dinheiro e demais pertences sejam destinados à minha querida irmã Grete. Caro amigo, receba o abraço apertado de seu

Georg Trakl

Sebastião Uchoa Leite fez o poema “Ludwig im Traum” (de A espreita), tratando de Trakl e Wittgenstein com um tom de histórias em quadrinhos, como outros textos seus:

Wittgenstein não entendia
Os poemas de Trakl
Provavelmente
Georg entenderia
Ainda menos
Os filosofemas de Ludwig
Ainda assim
Ludwig financiou-o
Não é o amor que move o Sol
Muito menos as estrelas
O filósofo sabia mas
O saber
Preferia calar
A floresta íngreme de Georg Trakl (II)

Por Nicole Cristofalo e André Dick

É notável a melancolia de Trakl em suas cartas e seus poemas (um intitula-se, apropriadamente, “A melancolia”), direcionada, sobretudo, à irmã, a exemplo, também, de “Resto” (na tradução de André Vallias):

Ó rever-se em êxtase
No outono tardio.
Rosas amarelas
Desfolham no gradil,
Em lágrima escura
Uma grande dor se dissolveu,
Ó irmã,
Tão calmo finda o dourado dia.


Ou em “À irmã” (na tradução de Cláudia Cavalcanti):

Para onde vais será outono e tarde,
Veado azul que sob árvores soa,
Solitário lago na tarde.

Baixo o voo dos pássaros soa,
Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,
Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.
Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,
Na tua fronte, os arcos.

Também em “Calma e silêncio” (na tradução de Cavalcanti), no dístico final: “Um rapaz radiante / Surge a irmã em outono e negra decomposição”. A irmã de Trakl, apesar de casada, correspondia a problemática relação incestuosa, também dependia de narcóticos (conforme lembra Cavalcanti) e acabou se suicidando também em 1917, aos 25 anos.
Em Estâncias, Giorgio Agamben tenta desenhar – no que remete novamente a Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco alemão – o panorama da melancolia. Para isso, parte de um clássico texto de Freud, “Luto e melancolia”. Nesse ensaio referencial, Freud observa – e algumas ideias são recuperadas por Agamben – que, para algumas pessoas, o luto se dá como reação à perda de alguém querido ou de algum objeto (um livro esquecido na infância, um lugar não mais visitado), ou de alguma abstração (como o “país”, a “liberdade” ou o “ideal de alguém”), e a melancolia age às vezes em razão dos mesmos fatores, com a diferença de que se torna sintomática, da qual o sujeito tem dificuldades de se livrar, vivendo-a continuamente. Porém, Freud se pergunta por que às vezes o sujeito consegue superar a perda de alguém que lhe é estimado, mas nunca consegue se livrar de um sentimento de melancolia. É que, para Freud, o objeto perdido é como um sentimento recalcado, dando-se no inconsciente no sujeito e recaindo sobre o ego, pois a “apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido” e, se a libido é abalada, a perda do objeto se transforma na perda do próprio ego, lembrando-se, aqui, que, nas categorias de Lacan, o Imaginário tem muitos elementos daquele.


Em Trakl, o sentimento é de perda completa: não só da estrutura familiar ausente, como também diante desse amor incestuoso. Portanto, ele convive com a melancolia continuamente. Por isso, escreve em “Olhando um velho álbum” (na tradução de Cláudia Cavalcanti):

Sempre voltas, melancolia,
Mansidão da alma solitária.

[...]

Arrepiada sob estrelas de outono,
A cabeça mais baixa a cada ano.

A impressão é que, com essa melancolia, Trakl não se liberta das imagens da infância, nem da floresta que a circunda, como em “Vento quente (na tradução de Cavalcanti): “Profundo o vento em árvores destruídas, / E a figura de lamento da mãe / Vagueia pela floresta solitária” e “O sono”: “Este jardim estranhíssimo / De árvores entardecentes” (na tradução de André Vallias). Temos o poema “Nascer” (na tradução de Vallias) como uma das melhores criações nesse sentido. Segue um fragmento:

Serrania: negruras, silêncio e neve.
Vermelha, da floresta desce a caça;
Ah, os olhares de limo da fera.

Calma materna; sob negros pinheiros
Abrem-se as mãos adormecidas.
Quando surge destruída a lua fria.

Ou como escreve em “Salmo”: “A praça da igreja está escura e
silenciosa, como nos dias de infância”; em “Proximidade da morte”:
“Oh, a tarde, que vai às sombras aldeias da infância. / O lago
sob os salgueiros / Enche-se de suspiros emprestados de melancolia”),
em traduções de Cavalcanti. A poesia de Trakl traz imagens sempre
de um sujeito solitário, mais interessado no crepúsculo do que
no nascer do sol e, por isso, propenso ao universo noturno e
ao gelo das paisagens.


Notável a maneira como Trakl desenvolve essa melancolia, colocando, ao mesmo tempo, cores em seus poemas, como em “Na primavera” (na tradução de Vallias):

Afundou suave, com o passo escuro, a neve;
À sombra da árvore
Pálpebras rosas elevam os amantes.

Segue sempre ao chamado escuro do barqueiro
Estrela e noite;
E os remos batem suave no compasso.

Ante o derrocado muro, floram em breve
As violetas,
Verdeja tão silente a têmpora do solitário.

Ou em “Canto dum melro em cativeiro”, dedicado a Ludwig von Ficker (na tradução de Vallias):

Sopro escuro nos ramos verdes.
Flores azuis circunscrevem o rosto
Do solitário, o passo dourado
Agonizando sob a oliveira.
Esvoaça a noite de asas inebriadas.
Humildade sangra tão suave,
Orvalho esvaindo em gotas de florido espinho.
Compaixão de braços radiantes
Abraça um coração que despedaça.


Em De profundis, são apresentados seus principais poemas, repletos de imagens intensamente expressionistas, calculando o uso das cores (como o azul, que Cláudia Cavalcanti investiga em seu posfácio, próximo ao de Mallarmé, pois significa melancolia e, muitas vezes, escuridão), como vemos no referencial “Sebastião no sonho” (do qual reproduzimos o trecho inicial, na tradução de Cavalcanti, destacando construções diretamente relacionadas a cores, o que não significa que toda a construção não seja pautada por aromas e intensidades):

A mãe teve a criança sob a lua branca,
À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,
Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro;
E silencioso
Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,

Discreto, na escuridão da janela; e velharias
Dos antepassados
Jaziam podres; amor e fantasia outonal.

Escuro o dia do ano, triste infância,
Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,
Quietude e semblante;
Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,
E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.

Ou quando pela mão fria da mãe
À tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;
Um frágil cadáver jazia inerte no escuro da câmara
E erguia sobre este as pálpebras geladas.

Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,
O sino ao longo do novembro da noite,
O silêncio do pai, dormindo ao descer a espiral crepuscular.

Paz da alma. Noite de inverno solitário,
As escuras sombras dos pastores no velho lago;
Criança na cabana de palha; quão discreta
Baixava o rosto em febre negra.

Noite sagrada.
Ou quando pela bruta mão do pai
Subi em silêncio o sinistro Monte Calvário
E em crepusculares nichos dos rochedos
A figura azul do Homem passava pela sua lenda,
E da ferida sob o coração corria o sangue purpúreo.
Oh, com que leveza erguia-se a cruz na alma sombria.

Amor; quando em recantos escuros derretia a neve,
Uma brisa azul aninhava-se alegre no velho sabugueiro,
Na abóbada de sombras da nogueira;
E à criança aparecia devagar um anjo rosado.

Alegria quando em quartos frios soava uma sonata noturna
Nas vigas de madeira marrom
Uma borboleta azul saía da crisálida prateada.

Oh, a proximidade da morte! Em muro de pedra
Inclinava-se uma cabeça amarela, a criança muda,
Quando naquele mês de março caía a lua.

Róseo sino de Páscoa na abóbada tumular da noite
E as vozes prateadas das estrelas
Fizeram descer da fronte do adormecido uma sombria loucura
[em calafrios.

Oh, tão silencioso um passeio pelo rio azul abaixo
Lembrando o esquecido, quando nos galhos verdes
O melro chamava ao ocaso um desconhecido.

Ou quando pela magra mão do ancião
Passava à noite ante o muro em ruínas da cidade
E aquele de casaco negro levava uma criança rosada,
E à sombra da nogueira aparecia o espírito do mal.

Tatear os verdes degraus do verão. Oh, tão silenciosa
Ruína do jardim no silêncio marrom do outono,
Odor e melancolia do velho sabugueiro,
Quando na sombra de São Sebastião expirava a voz prateada
[do anjo.



Por meio desse jogo de cores e sensações (o frio predomina; como em outros poemas, as sombras compõem o caminho pela floresta íngreme), Trakl é um expressionista simbolista, dialogando sobretudo com Rimbaud (como destaca Cavalcanti). Nesse sentido, Trakl é extremamente pictórico e dialoga tanto com os expressionistas mais luminosos quanto com os expressionistas mais obscuros. Vejamos, ao mesmo tempo, o belo “Verão” (na tradução de André Vallias):

À tarde cala-se o clamor
Do cuco na floresta.
Mais fundo verga o trigo,
Papoula vermelha.

Negra tempestade ameaça
Sobre a colina.
O antigo canto dos grilos
Agoniza no campo.

Não mais se agita a fronde
Da castanheira.
Pela escada espiralada
Farfalha teu vestido.

Silente fulge a vela
No quarto escuro;
Uma mão de prata
A apagou;

Calmaria, noite sem estrelas.
A exemplo do que afirma Michael Hamburger, em A verdade
da poesia:

Como figura literária, Trakl estava longe de ser cosmopolita ou metropolitano. Seu contato com os outros escritores, até mesmo os expressionistas alemães entre os quais os historiadores da literatura o incluem, era raro e marginal, embora sua leitura precoce de Rimbaud e de outros poetas franceses o tenha influenciado a forma de escrever. Se a poesia de Trakl se tornou internacionalmente acessível, de um modo como não sucedeu com os poemas de guerra característicos de Wilfred Owen, Isaac Rosenberg e Siegfried Sassoon, isso se deveu ao fato de sua modernidade derivar mais das tendências estilísticas comuns a muitas literaturas e movimentos diferentes do que de atitudes e experiências.


A poesia de Trakl mostra o recolhimento do próprio autor, por isso é tão representativa de sua vida e de sua morte. Nesse sentido, não parece acertado considerar, como Hamburger, que ela tenha derivado mais de tendências estilísticas (incluída aí o simbolismo) do que das próprias atitudes e experiências. Focalizando um universo que parece à parte, própria de um Imaginário que tenta escapar de qualquer realidade, ainda que com referências esparsas familiares e imagens atormentadas, vividas por Trakl, essa poesia está desiludida com a humanidade – no entanto, não desacredita na cura pessoal, que se faz pela linguagem. Trakl coloca o leitor em sua floresta íngreme particular, transformando sua vida em símbolos carregados de pressentimento de um universo pronto a ser visitado.
Sobre “Sebastião no sonho”, o poeta Rainer Maria Rilke escreveu, em carta a Ludwig von Ficker, em 15 de fevereiro de 1915 (em tradução de Cláudia Cavalcanti):

Nesse meio tempo, recebi o “Sebastião no sonho”, do qual muito já li: comovido, estupefato, cheio de pressentimentos e perplexidade; pois logo se entende que as circunstâncias desse soar ascendente e ressoar descendente foram irremediavelmente únicas, justamente como as que nascem do sonho. Tenho a sensação de que, mesmo para alguém próximo a Trakl, essas perspectivas e visões só aparecem como se através de vidros, como se excluído delas: pois a experiência de Trakl é como uma sucessão de reflexos e preenche todo o seu espaço, inacessível qual o espaço do espelho. (Quem poderá ter sido ele?)

Quem poderá ter sido Trakl?
Nesse sentido, o poema “De profundis” (na tradução de Cavalcanti) sintetiza a obra do poeta, pela construção exata de imagens, o uso de cores e os cenários vazios, cercados pela chuva, por um vento e um pôr do sol melancólico. Ao fim, a aproximação da figura divina e do bosque, sob estrelas – num pântano cheio de lixo – e os anjos cristalinos (que certamente influenciariam Rilke):

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom; ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.