segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Os paradoxos da modernidade em Antoine Compagnon

Por André Dick

O filósofo Jürgen Habermas lembra que o processo de distanciamento do modelo da arte antiga foi introduzido no início do século XVIII pela célebre Querelle des anciens et des modernes. Os modernos se voltavam “contra a autocompreensão do classicismo francês, quando assimilam o conceito aristotélico de perfeição ao de progresso, tal como este foi sugerido pela ciência natural moderna”, passando a questionar “o sentido de imitação dos modelos antigos com argumentos histórico-críticos; em contraposição às normas de uma beleza absoluta, aparentemente supratemporal”. Entretanto, o substantivo modernitas, como lembra Habermas, juntamente com o par antitético de adjetivos antiqui/moderni ,já era empregado desde a Antiguidade tardia. Nas línguas europeias o adjetivo foi substantivado mais perto de meados do século XIX pela primeira vez nos domínios das belas-letras, constituindo na ligação direta entre três fases da modernidade: o romantismo, o simbolismo e o modernismo (constituídos pelas vanguardas europeias do início do século XX).


Em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, em que se dedica a estudar o caso de Constantin Guys, Baudelaire, com base nesse conceito atemporal, escreveu que a modernidade é “o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte, cuja metade restante é eterna e imutável”. A proposição do poeta francês é pertinente para retomar o próprio conceito original de modernidade. Baudelaire percebe, assim, que a modernidade não se distancia do seu “caráter precário”, mas sim de sua “trivialidade”, desejando que o “momento transitório seja reconhecido como o passado autêntico de um presente futuro”. A modernidade torna-se o que um dia será clássico, sendo este, doravante, o “ ‘clarão’ da aurora de um novo mundo, que decerto não terá permanência, mas, ao contrário, sua primeira entrada em cena selará também a sua destruição”. Dá-se, então, a ligação entre modernidade e a moda, pois o “novo” em Baudelaire não presta nenhuma “contribuição ao progresso” (que ele ligará ao conceito de decadência). Como lembra Benjamin, o poeta francês “faz aparecer o novo no sempre-igual e o sempre-igual no novo”. É esse um dos pontos de que parte Compagnon em seu Os cinco paradoxos da modernidade.


Se o livro Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich, ao contrário, revela uma análise em que a base é a tradição da modernidade como a procura absoluta do novo, ignorando toda e qualquer tradição anterior, em seu livro Os cinco paradoxos da modernidade, o crítico francês Antoine Compagnon destaca que o livro de Friedrich foi um sucesso e teve significativa influência no meio literário francês, em razão de sua “bela explicação histórico-genética, jogando habilidosamente com a teoria e a análise”, que de “tão sedutora, tão surpreendente em clareza e simplicidade, na descrição da própria obscuridade” acaba fazendo com que não se entenda quando são feitas restrições a ela. Há, como aponta Compagnon, algumas restrições ao trabalho de Friedrich. E Compagnon o desconstrói com toda sua argumentação de ter sido o aluno de Roland Barthes que mais chegou perto do mestre. Friedrich vê como negativo esse distanciamento do ser em relação à realidade, pois ele o liga a um inconsciente que tenta organizar o caos à sua volta, além de melancólico e decadente, no sentido de inadequado à sociedade, afastado do sublime.


Compagnon afirma que, para justificar a despersonalização e da desrealização, o autor recorre a uma “generalização sociológica” inadequada: o objetivo do poeta seria fugir da realidade, pois se recolhe na linguagem.
Desse modo, avaliar que a tradição moderna seja reduzida a uma “evasão” ou “fuga diante da realidade social” – e, poder-se-ia acrescentar, uma recusa ao sublime – é, como constata Compagnon, um “salto brutal”. Compagnon baseia-se, em suas palavras, na interpretação de Paul de Man, em Blindness and insight, que criticava essa completa evasão, além da “linearidade histórica”, observada por Friedrich, ao organizar a progressão das obras conforme a data de nascimento de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. No entanto, enquanto Baudelaire produzia, Rimbaud começava a escrever. Além disso, este veio, mesmo quando já havia abandonado a vida poética, tornando-se traficante de armas na África, a encontrar-se com Mallarmé, o que os torna contemporâneos. Sua criação, sob esse ponto de vista, não apresenta a linearidade notada por Friedrich, ou seja, a obra de Mallarmé não existiu apenas depois de entender os ganhos e perdas das de Baudelaire e Rimbaud (mesmo porque eles não tinham esta crítica de interpretação sobre suas obras, como hoje as conhecemos, embora Mallarmé, por exemplo, conhecesse as de Rimbaud e Baudelaire).


Um autor que Compagnon recupera para apoiar sua teoria é Octavio Paz. Observa Paz que, através de sua razão crítica, a literatura moderna fez com que o céu e o inferno fossem despovoados, e com que os espíritos voltassem à terra, ao corpo dos homens e das mulheres. Este regresso, para Paz, vem, de forma definitiva, com o romantismo, com a afirmação de que a poesia moderna encarna “a voz de um princípio anterior à história, a revelação de uma palavra original de fundamento”. O tempo histórico da modernidade constituir-se-ia numa revolução, enquanto a inocência original estaria no tempo mítico do cristianismo, equilibrando-se, portanto, entre a “tentação revolucionária” e a “tentação religiosa”. Por ser quase sinônimo de crítica, segundo Octavio Paz, a modernidade apresenta uma literatura crítica. Mas, para o poeta-crítico, esse movimento é paradoxal, pois, se por um lado, a literatura moderna é uma apaixonada negação da modernidade, por outro, ela é uma crítica de si mesma. Dos dois modos, afinal, a literatura moderna, ao negar-se, caracteriza sua modernidade. Esse é um dos paradoxos da modernidade a que se refere Compagnon – como a “tradição da ruptura” pode ser também a “ruptura da tradição”?


Em O demônio da teoria, Compagnon faz uma espécie de manual, mas sem nada de didático, enfocando principais temas relacionados à literatura: quando trata da mimesis, questiona sobretudo Roland Barthes. Lembra da importância que continuam tendo Platão e Aristóteles para o conceito que Barthes teria querido destruir. É um óbvio exagero. Mas Compagnon vai tratar da biografia; pelo enfoque que dá, Barthes refere-se basicamente à vida pessoal do autor, às escolhas profissionais, aos lançamentos de obras e aos laços familiares, em suma, a obra é uma representação direta da vida. Barthes confunde, segundo Compagnon, algumas vezes, o autor com um personagem de romance. Neste, fica claro que o “eu” costuma constituir uma personagem, não sendo uma “combinação de semas fixados em um Nome civil”, com a biografia, a psicologia e o tempo não podendo mais dominá-los, levando-o a uma “configuração incivil, impessoal, acrônica, de relações simbólicas”. Não fosse assim, estaríamos, nesse caso, tratando de uma autobiografia. A autobiografia, sabemos, é um texto que um determinado indivíduo escreve sobre sua vida, no que difere da biografia, na qual podem se encontrar todas as possibilidades de escrita que perseguiu. Podemos nos perguntar se este caminho – separar o poeta de sua biografia – no entanto, é uma decisão do crítico ou do poeta que constituiu sua obra na direção de uma inexistência. Na visão de Compagnon, “no topos da morte do autor, confunde-se o autor biográfico ou sociológico, significando um lugar no cânone histórico, com o autor, no sentido hermenêutico de sua intenção, ou intencionalidade, como critério da interpretação: a ‘função do autor’ de Foucault simboliza com perfeição essa redução”, fazendo uma recuperação histórica. Ainda assim, Compagnon deixa de observar que os textos relacionados a uma possível “morte do autor” não apenas confundiram as intenções de um autor com sua parcela biográfica, mas queriam que elas se fundissem em linguagem, criando o desaparecimento e o surgimento da escritura ao mesmo tempo. Mas esses são obviamente paradoxos que Compagnon não quer desfazer – muito pelo contrário: amplia para todo o conhecimento do leitor.


Compagnon não tem argumentos para contestar a ligação da poética de Aristóteles com o contentamento da massa. Prefere argumentar que Aristóteles escreveu uma epistemologia que se contrapõe à posição dos estruturalistas. Mas o faz buscando elementos em Aristóteles que os estruturalistas justificam como coerentes (embora não os considerem precursores de suas experiências): a noção de que há trabalho com linguagem em qualquer discurso (no caso de Aristóteles, na narratologia), de que os seres humanos disfarçam sentimentos através da representação, de que não há nada completamente verossímil quando a realidade vira linguagem, podendo-se acreditar em coisas inacreditáveis inverossímeis – e ainda vê-las como verossímeis. E Compagnon, ao combater a ideia de “ilusão referencial”, combate justamente a ideia de mimesis – a fim de abalar o sistema estruturalista.
Compagnon parece não perceber, porém, que o mundo – o real, a sociedade, o sistema, a ideologia, a retórica vazia – existiria muito bem sem a literatura – pois são elementos caros ao comércio, à relação de interesses, de valores concretos e não irreais. A literatura é, como diria Mallarmé, uma “moeda cara” demais para a realidade: não se pode comprá-la – e, assim, é impossível vendê-la, representá-la através de classes baseadas na unidade do lucro. Não precisaríamos de livros para continuar a ter nossa linguagem, no cotidiano, em nossas representações. Linguagem não se refere apenas à literatura; ela, sim, inexiste sem o real. Mas a linguagem da literatura, que não copia a realidade, apenas a expressa (por figuras de linguagem), pode existir sem precisar dar nada em troca. Em vez de mostrar que os estruturalistas erraram ao não valorizar parte das ideias de Aristóteles, Compagnon prefere dizer que eles estavam equivocados e superados. Todavia, ao compor sua visão, mais se afasta de Aristóteles e usa os argumentos que se aproximam dos autores estruturalistas, negando, porém, a própria visão que tem sobre a literatura.
Deduz-se, de tudo isso, que Aristóteles, por ser um filósofo, antes de um pensador dedicado à literatura, falha na questão da aceitação de representação. Ele prefere, como um grande retórico, orador e interessado nos movimentos políticos da humanidade, controlar a plateia através do maquineísmo do previsível. Ou seja, como já foi dito e é repetido por ser importante, quando pede para que o autor trabalhe com sentimentos de pavor ou de paixão, Aristóteles expõe elementos sistemáticos e caros a uma criatividade na qual o autor trabalhará com o processo de leituras individual, com seu Imaginário (que é sempre inconsciente e se forma por meio de uma multiplicidade de leituras). A literatura apresenta o Imaginário de cada autor – que engloba suas leituras (de outros autores), sua escolha dessas leituras, desenhando um outro Imaginário, além de suas várias máscaras, detrás das quais tenta encobrir o que, lacaniamente, na verdade ele não é, nunca foi ou será.