domingo, 27 de junho de 2010

A ruptura consciente de Kilkerry (I)

Por André Dick

Alguns poetas são, por motivos muitas vezes inexplicáveis, relegados a um segundo plano, quando não totalmente esquecidos. Torna-se mais sério seu esquecimento quando este atravessa décadas, até séculos.
É o caso do poeta baiano Pedro Kilkerry, nascido em 1885, em São Salvador na Bahia, numa família em que pai era de origem irlandesa e a mãe era de origem baiana, vindo a morrer em 1917. Recuperado de forma mais aprofundada por Augusto de Campos a partir de uma avaliação sincrônica da poesia brasileira – não diacrônica (nesse ponto, entenda-se a linear, a que não calcula rupturas dentro de sua linhagem), da mesma maneira que Gregório de Matos havia sido excluído do programa da poesia moderna – e Haroldo o recuperou, no ensaio “O sequestro do barroco na Formação da Literatura Brasileira” –, Kilkerry quase ficou no limbo dos esquecidos. Vejamos que o caso de Kilkerry é diferente: a “violência da letra” impressa, à qual não se submeteu, não preexistiu ao seu descobrimento. Sousândrade, antes dele, sim, foi esquecido porque simplesmente publicou durante a época do Romantismo, período que o abrigou, e não comportava um poeta como ele, transgressivo e extremamente consciente de sua prática. Esta característica Kilkerry também possuía, mas com uma leitura bem mais avançada, dos simbolistas, de Baudelaire a Mallarmé, ou seja, envolvido por uma tradição de ruptura, de consciência dos limiares que a escrita projetava no horizonte estético da produção, ambiente oposto àquele no qual Sousândrade produziu a sua ruptura.
Em A operação do texto, Haroldo, pensando na figura do historiador que cria, dá espaço à recepção da obra, ou está insatisfeito com seu métier ou quer estabelecer a história como uma seleção de seus bens. Ou seja, ele prevê que a historiografia se ressente de pessoas que simplesmente, ao contrário do que se espera, pararam no tempo, depositando suas esperanças em autores que necessariamente não possuem relevância num percurso antilinear.
O que revaloriza o programa poético de Kilkerry passa por nossas categorias de contemporâneo. Conseguimos apenas reavaliar a obra de um autor como Kilkerry porque temos consciência das etapas pelas quais a poesia passou desde os salões da modernidade de Baudelaire. Temos consciência da qualidade de sua obra porque elas se enfrentam, confrontam qualquer obra que se pretende contemporânea. A contemporaneidade se concentra na multiplicidade de tempos (no qual passado, presente e futuro dialogam entre si).


A obra de Kilkerry diz tanto aos dias de hoje (de ontem, de amanhã) quanto diziam na época em que foi realizada. Qual é o ambiente em que uma obra interessante se produz? Que elementos levam um poeta por optar em seguir esse ou aquele caminho? Kilkerry deixou pouquíssimos, raros poemas, feitos a partir de uma visão simbolista, ou seja, ele não faz apenas poesia, mas também música, por meio de seus versos.
Como o dos simbolistas, o trabalho de Kilkerry não deve ser visto pela quantidade, ou seja, pelo que excede. Segundo Augusto de Campos, com o intuito de analisar o “corpus” considerado pequeno de poemas concretos, como o de Kilkerry, avalia: “Em toda as épocas e latitudes literárias há exemplos dessa espécie. Uns poucos sonetos das Chimères de Gérard de Nerval devoram, aos olhos modernos, toda a obra poética de Victor Hugo. Donne e os ‘poetas menores’ da ‘poesia metafísica’ inglesa chegam a interessar-nos mais, sob muitos aspectos, que a própria obra admirável de Shakespeare. Hoelderlin, antes que Goethe, se nos afigura, hoje, um poeta essencial, ‘o poeta do poeta’ na expressão de Heidegger. A pequena obra de Gerard Manley Hopkins, editada postumamente, esmaga a Victorian Age. O Livro, também póstumo, de Cesário Verde, tem um destino semelhante em relação à poesia portuguesa do seu tempo. Arnaut Daniel, o miglior fabbro da poesia provençal, não deixou mais que 18 poemas. A grande obra poética de Mallarmé cabe num pequeno volume”. Em seguida, Augusto cita alguns músicos que perfazem esse trabalho do “menos é mais”, antes de adentrar no simbolista baiano Pedro Kilkerry, leitor dos simbolistas e o principal simbolista brasileiro. Não se tinha obra editada de Kilkerry antes da Revisão feita por Augusto, uma vez que, como conta Jackson Figueiredo, “Kilkerry tinha seus poemas de memória” e quando os escrevia o fazia em pedaços de papel e páginas de livros, nas paredes, sem a intenção de publicá-los.


Para uma introdução rápida ao universo da música, no qual diversos poetas, principalmente os provençais e os da modernidade, como Arnaut Daniel e Mallarmé – este uma influência direta em Kilkerry – foram buscar alimento para sua obra, é interessante se valer do ensaio “Música, filosofia e literatura”, de Benedito Nunes. Muitos outros escritores, entre músicos, filósofos, poetas e críticos, já versaram sobre a relação entre música e poesia, mas cabe aqui ser objetivo e procurar, de forma sucinta, estabelecer um diálogo entre a literatura e a música, projeto intertextual característico da modernidade tanto de Baudelaire quanto de Mallarmé.
Benedito, em seu artigo, afirma que, se no século XVIII a arte musical do Ocidente parecia ter sido banida do âmbito do pensamento literário ou filosófico, no século XIX, ela passou a constituir o polo valorativo da poesia e “mesmo a experiência privilegiada, ora latente, ora manifesta, que a filosofia e a psicologia absorveram”. Naturalmente, a visão de Benedito Nunes ultrapassa o meramente literário, para mergulhar na projeção que teve a música sobre muitos filósofos, entre os quais Rousseau e Kant. O que importa aqui, porém, é sabermos que no século XVIII a literatura era considerada superior, com a justificativa de oferecer um “processo gradual de descoberta, de aprofundamento, como penetração intelectual do texto”, enquanto a música não trabalhava com o entendimento. Assim, o texto, na filosofia de então, proporcionaria conhecimento, enquanto a música despertaria mais emoções, “estados da sensibilidade e da afetividade; entre a comoção visceral e o deleite evocativo, entre o prazer sensível, até sensual, quase físico e o sentimento estático”. O julgamento de Kant, para Benedito, seria exemplar: a música é “mais gozo que cultura”. A música passaria também pelo aprofundamento de Hegel e Schopenhauer.


A partir do final do século XIX, a música já apresenta nomes como Richard Wagner, e a linguagem verbal começa a perder sua “ascendência intelectual”. Na segunda metade do século XIX, esse músico lançar-se-ia quase ao mesmo tempo da publicação de Les fleurs du mal, de Baudelaire. Não por acaso Baudelaire escreveria um artigo sobre Wagner, intitulado “Richard Wagner e Tannhäuser em Paris”. Para ele, Wagner representava a união entre poeta e músico, o “artista completo que em sua combinação de drama, poesia, música e cenário exemplificou a realização da perfeita inter-relação das percepções sensoriais que deviam ser o ideal do poeta”. Como Baudelaire, lembra Anna Balakian, Mallarmé “sugeriu que a música era algo mais do que o prazer que se harmonizava no ouvido. Música não por amor ao prazer ou à emoção, mas para movimentar e provocar a imaginação” – o que Baudelaire chamou “um êxtase feito de enlevo e conhecimento”. Por sua vez, Mallarmé identificou essa provocação como “a junção da visão e da audição que se torna uma compreensão abstrata”. O problema de toda sua vida, chama a atenção Valéry, era “devolver à Poesia o mesmo império que a grande música moderna lhe havia roubado”.
Cada vez mais, os poetas da modernidade se aproximaram do silêncio para chegar à música. Assim aparece em Kilkerry que pensa “um presente, num passado” no poema “É o silêncio”:

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas...Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma que ao som que se aproxima
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...

E abro a janela. Ainda a janela esfia
Últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.


Se a estrofe final lembra mais um simbolismo baudelairiano, sob a influência de Poe, no restante do poema as imagens são mallarmeanas (silêncio, cigarro, vela acesa no primeiro verso; o livro que olha da estante no segundo), outras imagens adentram esse silenciamento verbal: “sangue da luz em cada folha”, “mão que molha a pena”, o “bulir das coisas”, o passo que “se aveluda”, “asa que o ouvido anima”, “câmara muda”, “asa da rima”, “sala muda que afonamente rufa”, além do orientalismo já evidente em Mallarmé (quando o poeta se imagina um Buda). São signos que denotam uma leveza. Eis que a música rompe o espaço: “Últimas notas trêmulas” – destacando-se o vocábulo “trêmulas”, o que indica a oscilação tanto de imagens quanto de métrica, apesar das rimas. Impressiona a musicalidade desse poema, a condução dos versos, entre aliterações e assonâncias, descrevendo uma imagem sobre a qual paira o silêncio – mas é um silêncio verbal, simbolista, exposto em palavras.
A ruptura consciente de Kilkerry (II)

Por André Dick

Segundo Benedito Nunes, “próprio da poesia é servir-se da expressão verbal para resgatá-la”, uma vez que a poeticidade aprofunda tal desgaste “até romper com as lindes da expressão verbal que o silêncio já circunda; ultrapassando esses limites, só a música, quebrando o silêncio que o verbo não preenche, é capaz de se fazer ouvir”. Desse modo, Mallarmé e Verlaine, que procederam Baudelaire, quiseram “estabelecer não só a convergência, mas a coincidência entre música e poesia”, com o objetivo de “situar uma e outra aquém e além da linguagem verbal, como se a poesia pudesse romper com o circuito do significante e do significado ao qual se acha encadeada”.


Em seu artigo “La musique et les lettres” (1894), Mallarmé escreve que “a Música se une ao Verso, a partir de Wagner, para formar Poesia”. Em “Crise de vers”, diz: “Toda alma é uma melodia, que se busca reatar; e por isso existem a flauta e a viola”. E ainda: “Que uma extensão medida de palavras, abarcadas para a compreensão [...] se ordene em traços definitivos e com ele o silêncio”.
Pierre Boulez avalia que desde o final do século XIX as correntes poéticas têm uma “forte ressonância no desenvolvimento estético da música”. Isso se deve, sobretudo, segundo o músico francês – aliando esta análise à da crítica estruturalista – ao fato de que a palavra da sua época é estrutura:

Se escolho um poema para fazer dele algo mais que o ponto de partida uma ornamentação que irá tecer arabescos à sua volta, se escolho o poema para instaurá-lo como fonte de irrigação de minha música e criar assim um amálgama de tal natureza que o poema se torne “centro e ausência” do corpo sonoro, então não posso me limitar apenas às relações afetivas que as duas unidades mantêm entre si; impõe-se uma trama de conjunções que comporta, entre outras, as relações afetivas, mas que engloba, por outro lado, todos os mecanismos do poema, desde a sonoridade pura até sua ordenação inteligente.

Para Octavio Paz, embora o horizonte de Un coup de dés não seja o da técnica, na medida em que seu vocabulário é ainda o do simbolismo, o que Mallarmé deseja em seu poema, e esclarece no prefácio, é um “espaçamento da leitura”, aliado a um aspecto antidiscursivo, em que a Ideia absoluta se fragmenta e o poema só pode ser entendido na soma de suas partes, utilizando o branco como espaços musicais e tentando atingir uma visão suprema da página, que se abre para a poesia ocidental a partir das palavras que a preenchem. Buscando a entonação da música, da sinfonia, o poema de Mallarmé, porém, para ele mesmo, é um “esboço”, que não rompe com “todos os pontos da tradição”, mas “o suficiente para abrir os olhos”. Além de considerar a obra de Mallarmé tão importante para a civilização industrial como a Divina comédia de Dante para o Medievo, mesmo com suas apenas onze páginas duplas, “nas quais o poeta medita, em linguagem extremamente rarefeita”, para Haroldo de Campos, a revolução de Un coup de dés

não é apenas lexical e semântica, mas, além disto, sintática e epistemológica. Mallarmé é um syntaxier, um arrojado subversor da sintaxe. O poema constelar, na disseminação da forma, rompe a clausura da estrutura fixa e estrófica, dispersa a medida tradicional do verso.

Composto de “verdadeiros ideogramas verbivocovisuais, segundo Faustino, o poema apresenta uma “sintaxe dentro de cada palavra, uma sintaxe entre as palavras, uma sintaxe na soma das palavras e em qualquer coisa para além dessa soma”.
De qualquer modo, é a musicalidade ainda registrada pelo simbolismo, caracterizada, antes de Mallarmé, pelo poeta Charles Baudelaire, por Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, incorporada à busca pela forma da palavra, em seu tamanho e sua importância na disposição da página, que se destaca nos versos de Un coup de dés. Se Rimbaud pretendia, como observa Paz, fundar a palavra na história, Mallarmé proclamaria absurda e nula a intenção de fazer do poema o duplo ideal do universo. Essa ligação de Mallarmé com a música transparece em muitos poemas de Pedro Kilkerry, como em “O verme e a estrela”, musicado por Augusto e Cid Campos em Poesia é risco e por Adriana Calcanhotto em “A fábrica do poema”:

Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!

E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! Enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?

Vejamos a sonoridade que se distribui ao longo do poema por meio de epiderme/verme, compondo uma imagem ao mesmo tempo bela e negativa, encaixando a “luz” da estrela com o “azul” celeste. Uma imagem magnífica: “um raio ao teu viver”, e a melancolia do sujeito: “Eu cantaria a tua luz!”; “Ceguei! ceguei da tua luz?” – sentindo-se um verme extinto pela luz da estrela na epiderme.


Para Augusto, “Kilkerry não só compreendeu mais conscientemente que outros simbolistas o papel desempenhado na criação pelo subconsciente – mais tarde supervalorizado pelo Surrealismo – como soube levar mais longe a liberdade de associação imagética. Por outro lado, a capacidade de síntese, assim como as limitações da sintaxe ordinária, são mais aguçadas em Kilkerry do que em qualquer outro poeta do nosso Simbolismo”. No poema abaixo, “Harpa esquisita”, por exemplo, surge a versão kilkerryana de “Le bateau ivre”, de Rimbaud, numa sucessão de imagens marítimas, mas nada óbvias, em que o eu se encontra descentralizado, personificado por meio de signos característicos do simbolismo (“manto azul”, “asa no azul diluída”, “mar”, “pedras”, “almas”, “notas no ar”, “lírios de ouro”, “céu”, “hastes de prata”, “espuma”, “flor”, “estrelas”, “naufrágio” etc.):

Dói-te a festa feliz da verdade da vida...
Tanges da harpa, em teu sonho, almas e cordas, cantas,
Bóiam-te as notas no ar, a asa no azul diluída
E, assombrados, reptis – homens, não! tu levantas!

E apupilam-te a frente as mil pedras agudas
De ódios e ódios a olhar-te... E és um rei que as avista,
No halo, do Amor, que tens! se em colar as transmudas
Vais – um dervixe persa, o manto azul – Artista!

Inda olhar adormido abre, e é de ocre, e avermelha!...
Vem colar-te ao colar...e, oh! tua harpa esquisita
Plange... flora a zumbir, minúscula, que imita
A abelheira da Dor, em centelha e centelha.

E é a sombra... E o instrumento, a gemer, iluminado,
Como que à noite estrela um núbio corvo... E lindo
(Inda que as asas não no terás ao lado)
Por que os pétalos d’ouro, a haste de prata, abrindo,

Um lírio de ouro se alça?...Os passos voam-te, pelas
Ribas...Oh! que ilusões da flor, que tantaliza!
Sobe a flor? Sobes tu e a alma nas pedras pisa?....
Pairas... Em frente, o mar, polvos de luz – estrelas...

Pairas... e o busto a arfar – longe, vela sem norte.
Negro o céu desestrela, o seio arqueado: escuta.
No amoroso oboé solveja um vento forte
E, alta, em surdo ressoo, a onda betúmea e bruta.

A ânsia do mar, lá vem, esfrola-se na areia...
Seu líquido cachimbo é mágoa acesa, e fuma!
E chamas a onda: “irmã!”. E em fósforo incendeia
Na praia a onda do mar, ri com dentes de espuma.

De ametista, em teu sonho, uma antiga cratera
Mal te embebe – alegria! – alvos dedos de frio,
Eis se emperla o rosto e a prantear vês, sombrio
A onda crescer, rajar-se em brutal besta-fera!

Olhas... E, soluçoso, à música das mágoas
Amedulas o Mar e amedulas a Terra!
A sombra aclara... E é ver a dança verde de águas
E arvoredos dançando ao coruto da serra!

Gemes... Dedando o Azul as magras mãos dos astros
Somem, luzindo... Ao longe, esqueleta uma ruína
Em teu sonho a anervar argentina, argentina...
De ilusões, no horizonte, ossos brancos... são mastros!

Quente estrias a alma, à frialgem, nas cousas...
Que bom morrer! manhã, luz, remada sonora....
Pousas um dedo níveo às níveas cordas, pousas
E és náufrago de ti, a harpa caída, agora.

Ah! os homens percorre um frêmito. Num choro...
Move oceânica a espécie, amorosa, amorosa!
Mais que um dervixe, és deus, que morre, a irradiosa
Glorificação de ouro e o sol de ouro... à paz de ouro.



De todo este poema, parece-me que o fragmento que melhor caracteriza a modernidade de Kilkerry seja “Como que à noite estrela um núbio corvo”: através das palavras noite, estrela e corvo ele apresenta uma síntese não só do simbolismo, mas da modernidade, de forma absolutamente clara. Não podemos deixar de atentar, também, das imagens negativas: “Negro o céu desestrela” e “em surdo ressoo” – como se o poeta soasse para dentro, o que leva ao diálogo com “Oco”, de Augusto de Campos.
Segundo Augusto, foi apenas na segunda fase do simbolismo brasileiro, com Ernani Rosas e Kilkerry, que encontraremos algo parecido com “sínteses metafóricas” e “perturbações sintáticas” de um Mallarmé ou Rimbaud, dando o “salto para a modernidade” – lembrando-se que Kilkerry traduziu o poema “O sapo”, de Corbière, numa “recriação envolvente, sem nenhum desperdício semântico”. Desse modo, “Kilkerry traz para o Simbolismo brasileiro um sentido de pesquisa que lhe era, até então, estranho, e uma concepção nova, moderníssima, da poesia como síntese, como condensação: poesia sem redundâncias, de audaciosas crispações metafóricas e, ao mesmo tempo, de uma extraordinária funcionalidade verbal, numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas”. Desse modo, para Augusto, “em Kilkerry a dicção poética atinge uma contenção – que, diga-se de passagem, nada tem a ver com a imperturbabilidade olímpica e satisfeita dos parnasianos –, um despojamento, uma consciência artística e artesanal raramente logrados na poesia brasileira”. Na introdução a seu livro de traduções de Rimbaud, Augusto lembra do questionamento de Kilkerry – “O Inconsciente será um poeta simbolista?” –, ao qual ele mesmo responde: “o Inconsciente é um Rimbaud admirável, trabalha todo esse inanimado universal”. Segundo Augusto, junto com Cesário Verde e Pessoa, Kilkerry o inspirou para transpor “Le bateau ivre” para o português. Isso fica ainda mais claro quando vemos um poema como “Cetáceo” que, com o “azul num largo voo branco”, dialoga diretamente com Mallarmé e seus poemas que tentam alcançar cada objeto em sua unidade. No entanto, Kilkerry, como Rimbaud e Mallarmé, visualiza, através de todos, o “cetáceo” do título, como se cada verso se aproximasse como um zoom da cena imaginada:

Fuma. É cobre o zenite. E, chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo voo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.

Tine em cobre o zenite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’água ou do sol vermelho.

Como postula Ezra Pound, “a poesia se atrofia quando se afasta muito da música” e “o meio de aprender a música do verso é escutá-la”. Assim, segundo Pound, “toda canção popular tem pelo menos um verso ou sentença perfeitamente claro. Esse verso SE AJUSTA À MÚSICA”. Não por acaso, Augusto vai fazer uma ligação da Tropicália, de Caetano e Gregório de Mattos com os trovadores provençais – e insere o simbolista Pedro Kilkerry como o diálogo direto. Ele, com sua carga simbolista, é um trovador que se alinha com Mallarmé na ruptura consciente da tradição – o que o torna ainda mais vital para o estudo da poesia brasileira.

domingo, 6 de junho de 2010

Traços da oralidade em Mallarmé

Por Nicole Cristofalo

Ao discutir a oralidade, em Linguagem – ritmo e vida, o teórico francês Henri Meschonnic menciona elementos que se relacionam a ela e que justamente a distingue em relação à fala, tais como a escritura, o ritmo e a linguagem ordinária na obra do poeta francês Stéphane Mallarmé, desmistificando a sua aura de poética “incompreensível” e demonstrando que, por meio da ideia da oralidade, é possível realizarmos uma leitura que questione tal crítica.


Segundo Meschonnic: “Assim, podem-se transformar as evidências: Mallarmé. Toda uma modernidade, nos últimos trinta anos, o vê como o extremo do escrito, a própria negação do sujeito e da voz juntos, no livro impossível, no teatro abstrato, e não mais tanto as palavras raras do que a rarefação da linguagem e os brancos do Lance de dados. Essa era apenas uma leitura. O efeito de uma estratégia de escritura. Pode-se ler de outra maneira. Basta conceder o ritmo de outra maneira. Então, um outro Mallarmé, que estava escondido pelo anterior, surge. Um Mallarmé das palavras corriqueiras, do sujeito e da oralidade. O que mostra bem que não há diretamente ‘Mallarmé’, mas uma sequência de relações históricas com Mallarmé”.


Um dos aspectos fundamentais da oralidade é a ideia de escritura. Interessante notar que Meschonnic não procura definir o conceito de escritura, pois afirma que ela própria começa onde cessa o definir, o que nos remete a obra de Mallarmé, tão criticada pelo fato de ser de “difícil acesso”, com suas imagens e significados mal definidos: “nomear um objeto é suprimir três-quartos do prazer do poema, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho”, diria Mallarmé. E continua: “é o perfeito uso desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto e extrair dele um estado de alma, por uma série de decifrações”. Encontramos a mesma ideia em Meschonnic, quando ele critica: “a verdade dos nomes substituindo a verdade das coisas”. Podemos, então, pensar a obra do poeta francês como sendo uma escritura, pois esta se realiza quando se cria uma nova oralidade, um novo ritmo, e o que se confirma dentro da afirmação também de Roland Barthes: “sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, (...) mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (...) Na escritura múltipla (...) tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a escritura pode ser seguida, ‘desfiada’ (como se diz da malha de uma meia que escapa) em todas as suas retomadas”. Difícil pensarmos numa obra moderna que possa ser tão “desfiada” como o poema Un coup de dés, de Mallarmé, além de seus diversos sonetos, que não se fecham num único significado, trazendo inúmeras possibilidades de leitura por meio de suas imagens indefinidas, além da disposição dos caracteres no papel, a sonoridade do poema e até mesmo a sua (falta de) pontuação, todos atuando como elementos de ritmo. Ou seja, os elementos que compõem o ritmo do poema são constituintes de sua escritura. A relação do ritmo e da escritura é extremamente importante, segundo Meschonnic: “Se a escritura é o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento, então a escritura participa do desconhecido. Ou seja, do ritmo. Ela começa aí onde cessa o saber”.


Assim, o crítico situa a escritura no saber do futuro, ainda quando se torna passado, inscrita dentro do ritmo que organiza o discurso e insere o subjetivo, a gestualidade, a corporeidade na linguagem, a qual costuma ser analisada apenas por meio de aspectos linguísticos. Se formos pensar na obra de Mallarmé tendo apenas em mente o conceito de signo, chegaremos à mesma conclusão dos críticos que a enxergam como “ininteligível”. Pensar em Un coup de dés sem termos em mente a ideia de ritmo é deixarmos escapar inúmeras possibilidades de leitura deste poema que influenciou os mais importantes poetas da modernidade.

Confira o ensaio completo, que inaugura a seção BIO - Vida & Obra, na quinta edição da Celuzlose, editada pelo poeta Victor Del Franco: http://celuzlose.blogspot.com