domingo, 25 de abril de 2010

A melancolia antropófaga de Oswald (II)

Por André Dick

A “Antropofagia” de Oswald, por meio da produção do manifesto e dos poemas, para Haroldo de Campos, é “o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...), mas sob o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago”. Assim, o que Oswald realiza em sua obra representa os resíduos da poesia de Cendrars apenas em sua forma. Ele oferece ao leitor uma visão crítica da história, não encontrada no exotismo sublimado por Cendrars nas paisagens do Brasil que o encantaram, mas diz mais: o poeta sabe que não existe o Brasil que imagina – ou seja, o Brasil sem a “força de lei” –, por isso se faz melancólico. Ao mesmo tempo, o elemento antropofágico coloca Oswald entre os poetas de referência para a teoria da poesia concreta, por este movimento de antropofagia e (re)criação sobre elementos que isolam o Brasil do estrangeiro, e o coloca em contato com meios de produção eurocêntricos. Esta questão é muito mais complexa, como prova o movimento de Gregório de Matos Guerra, que, depois de sua passagem pela Europa, volta à Bahia, trazendo o Barroco na bagagem e fazendo uma literatura formalista num século em que o Brasil já estava começando a querer ser romântico. Como destaca Augusto de Campos, no artigo “Arte final para Gregório”, de O anticrítico, Gregório foi o “primeiro antropófago experimental da nossa poesia”, subvertendo a literatura de seu tempo e impondo a ideia de que o Barroco, no Brasil, não teve realmente “infância” ou “origem”, a exemplo do que observa Haroldo, já tendo nascido pronto, indo contra, justamente, a tendência da filosofia Ocidental – leia-se, de que a melancolia sempre esteve presente, tema caro a Haroldo de Campos, e a visão do paraíso inexiste.


Gregório, nesse refluxo de relações, não era baiano, mesmo nascido no Brasil, nem europeu, embora tivesse vivido em Portugal. O movimento antropófago de Oswald colocava o Brasil de volta aos trilhos de um diálogo com outras literaturas, sem ficar restrita à ideia de que o subdesenvolvimento econômico – que para Haroldo de Campos e Octavio Paz é uma falácia, justificadamente –, muito recorrente nas obras de alguns críticos brasileiros, impede uma atitude mais crítica diante da obra do outro. A alteridade (ou outridade, para utilizarmos um termo de Octavio Paz) se justifica não apenas como visão de mundo, mas como espelho de uma realidade que nos cerca. Como justifica Haroldo de Campos em sua análise sobre Gregório, em O sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, estudo que se origina em seu ensaio “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” (1980), não é possível justificar o logocentrismo sem a ideia de que a literatura deve ser criada a partir de um eixo central, baseado em “raízes nacionais”. Daí, para Haroldo de Campos, surge a necessidade da diferença (itálico do autor), isto é, “o nacionalismo como movimento dialógico da diferença”.
No “Manifesto da Poesia Pau Brasil”, do mesmo ano em que saiu a obra de poemas respectiva ao projeto, Oswald fazia o programa de sua trajetória existencial, programa este, nas palavras de Haroldo de Campos, de “dessacralização da poesia, através do despojamento da ‘aura’ de objeto único que circundava a concepção poética tradicional”. Tal aura, para Haroldo, inicia, a partir da visão de Walter Benjamin, com o desenvolvimento de meios da civilização contemporânea, a industrial, em seu auge, através da fotografia, do cinema, das técnicas de impressão. O dadaísmo também estava por trás, com sua miscelânea de palavras, refazendo todos os passos que uma obra deveria seguir para ser considerada “de vanguarda”. Com ele, o cinema possuía, mais do que o teatro ou a pintura, a realização mais próxima do que o indivíduo moderno queria da obra de arte, que, ao invés de propor a “ilusão da realidade”, buscava o real mais intenso, através da montagem de um grande número de “imagens parciais, sujeitas a leis próprias”.


O manifesto proposto por Oswald era um conjunto de referências ao universo cotidiano, mas era sobretudo melancólico. O poeta está falando de um universo que nos caracteriza, mas, que, reitera-se, ao mesmo tempo, não existe. Sua primeira proposição é clássica: “A poesia existe nos fatos”. É seguida de um olhar sobre a realidade circundante, com citação de Wagner (Oswald, aqui com saudade da Europa, visualiza um músico de lá num cenário que lhe é estranho):

Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Oswald queria mostrar desde “lado doutor” do Brasil, “Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens”, passando por “Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas-de-casa, tratando de cozinha”, até “Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos”. Queria “Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem”. Denominou a poesia então como “Ágil e cândida. Como uma criança”, indo contra o “gabinetismo, a prática culta da vida”, clamando por uma “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos, como somos”. É interessante perceber que Oswald deseja uma língua sem influência da modernidade europeia, que traz em seus trabalhos de poesia e prosa.
Finalmente, pregou a poesia “Pau Brasil” como “de exportação”, conduzindo seu olhar para o hibridismo das artes, com a evolução nos meios de comunicação, segundo ele “um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo”. O “Manifesto da Poesia Pau Brasil” é uma porta de entrada no “Manifesto Antropófago”. Criado em razão do contato de Oswald e Raul Bopp – o clássico autor de Cobra Norato – com um quadro – batizado de “Abaporu”, “antropófago”, em tupi-guarani – de Tarsila do Amaral, o manifesto, publicado em maio de 1928, no primeiro número da Revista de Antropofagia, assumiu de vez a antropofagia já vislumbrada no primeiro manifesto com um novo texto telegráfico, indicando novos rumos para uma poética brasileira, mas não se restringindo à literatura. Oswald sonhava, desta vez, com uma atitude filosófica: “Só a antropologia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. A antropofagia era vista como “Única lei do mundo”, “Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos”. Consumia William Shakespeare por vias selvagens, na proposição “Tupy, or not tupy that is the question”.


Com tal postura, Oswald se colocava, como ele mesmo observa, “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucuras, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Por isso, em cápsulas telegráficas, ponderava: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais”; “Nunca fomos catequizados” (ao mesmo tempo em que lembrava de figuras religiosas, sem esquecer da contundente crítica); “Fizemos foi carnaval”; “Expulsamos a dinastia”. Tudo, obviamente, o que não corresponde à realidade: de fato, estamos diante de um poeta melancólico, influenciado diretamente pelas descobertas de vanguardas europeias. Utilizando o vocabulário do “pai” da psicanálise, Oswald queria a “transfiguração do Tabu em totem”, inaugurando a antropofagia – queria, na verdade, um mundo que só existia em suas reminiscências de uma infância perdida. Esta poesia, baseada numa linguagem primitiva, como já foi referido anteriormente, busca nos fatos, como afirmava um dos tópicos do manifesto, a razão para a poesia. Na primeira parte de Pau Brasil, Oswald recorta momentos da história brasileira com uma dose peculiar de sátira. Nos poemas “A descoberta” e “As meninas da Gare”, por exemplo, o poeta brinca com trechos da “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha. Já em “Riquezas naturais”, Oswald brinca com a própria língua portuguesa arcaica, abolindo a sintaxe clássica e as vírgulas. A seção “Lóide brasileiro”, por sua vez, traz um dos poemas de Oswald mais banhados em sátira, “Canto do regresso à pátria”, uma brincadeira confessa com o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. A focalização do cotidiano, outra característica da poesia Pau Brasil, ligada ao universo paulista, no poema “Anúncio de São Paulo” e fluminense, no poema “Noite no rio”, fazem por encerrar com chave de ouro o livro de Oswald. “Noite no rio”, por sinal, resume todas as características de sua poesia. Trata-se de um poema com encadeamento de versos com técnica cinematográfica, centrado no cotidiano, no nacionalismo e na brincadeira, por vezes incontida, com o sentido lógico das expressões, e, claro, profundamente melancólica em sua tentativa de tornar presente o que é passado, abrigado na nostalgia de um país anterior à "força de lei".

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