domingo, 25 de abril de 2010

A melancolia antropófaga de Oswald (I)

Por André Dick

Há uma visão europeia sobre nossos primórdios (como a de Sérgio Buarque de Holanda), como se Walter Benjamin ou os formandos da escola de Frankfurt tentassem interpretar as origens do Brasil. Ou seja, a própria visão que muitos têm do Brasil passa pelo crivo europeu – e não exatamente da cultura. Com a chegada dos europeus, os índios, habituados a uma “uma visão do paraíso”, se aproximaram, de certo modo, pela “força de lei” – para utilizar a expressão do filósofo Jacques Derrida, segundo o qual não há Estado que não tenha sido fundado pela violência –, ao sentimento da melancolia. No entanto, Oswald de Andrade observava em seu “Manifesto Antropófago”: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Mas de que felicidade Oswald trata? Não seria o próprio Oswald um autor melancólico?


Desde que começou a ser interpretada, a melancolia é um traço bastante europeu e ligado às artes. Como lembra Susana K. Lages, em Walter Benjamin: tradução e melancolia, para Jean Starobinski, até o século XIX, a melancolia se dividiria em fases: a da Antiguidade Clássica, a que se estende da Idade Média até o séc. XVIII e, finalmente, a da “época moderna”, que abrange os séculos XVIII e XIX. Na Antiguidade, acreditava-se que a melancolia era o efeito da alteração na produção de bile negra), cuja sede era o baço, um dos quatro humores que, juntamente com o sangue, a bile amarela e a pituita, determinaria certas enfermidades, além de temperamentos e tipos psicológicos específicos”. Na época da Idade Média até o século XVIII, começou a se descartar essa hipótese, fazendo com que a melancolia estivesse ligada a uma perturbação de origem mecânico-nervosa, mais física. A partir do Renascimento, a melancolia passou a ser cultivada como a enfermidade dos artistas, dos literatos. Na medicina moderna e na psicanálise, a melancolia passa a ser vista mais como algo que provém da mente do que de caráter orgânico-corporal. Um dos primeiros a dar uma visão moderna sobre a modernidade foi Sigmund Freud, que escreveria em seu texto “Luto e melancolia”: “A melancolia se caracteriza psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até à expectativa delirante de punição”. No lugar da pessoa, pode-se colocar outros objetos: o passado que se foi, um lugar nunca mais visitado, um livro esquecido na infância, um fato que não pode mais ser mudado (e, no caso de Oswald, sem dúvida é a colonização e o diálogo com o continente europeu).


A poesia – para ficarmos no gênero em questão deste esboço de ensaio – até o modernismo de 22, com exceção de alguns nomes (como Sousândrade, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry), indicava mais um romantismo, que trazia os “eternos adãos”. Com Oswald de Andrade (1890-1954) querendo trazer o futurismo italiano às ruas de São Paulo, uma poesia cotidiana, como ele descreveu em seu “Manifesto Antropófago”, o traço não mudou. E foi ele o autor que, através das vanguardas, da antropofagia, pretendia destacar a origem dos índios.
Oswald é muito conhecido por seus versos que brincam com a linguagem do povo: “Qué apanhá sordado?”, “Para telha dizem teia”. Ou simplesmente cômicos: “Se Pedro Segundo / Vier aqui / Com história / Eu boto ele na cadeia”. Mas há um outro Oswald, que considero o mais apropriado à sua obra: o melancólico, que percebe o Brasil como um país deteriorado pela transformação, e ciente de que suas lembranças recordam uma terra que não existe mais, em “3 de maio”:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que nunca vi

Vejamos o exemplar “Menina e moça”, tematizando uma certa perda e o distanciamento da cidade grande, do urbanismo futurista: “Gostei de todas as festas / Porque esse negócio de missa / E procissão / É só para os olhares / Vou agora triste no trem / Com aquela paixão / No coração / Vou emagrecer / Junto às palmeiras / Malditas / Da fazenda”. Ou “Que distância! / Não choro / Porque meus olhos ficam feios”. Há o sentimento de que o passado não volta, em “São José del Rei”: “Bananeiras / O sol / O cansaço da ilusão / Igrejas / O ouro na serra de pedra / A decadência”. A melancolia é esta aceitação da impossibilidade de existir alegria, de que a negatividade, a força de lei, predomina.


Em seus tempos de juventude, Oswald estava mais interessado em viajar para Paris. Começou a fazer a rota Brasil-Europa já em 1912, quando trouxe de lá as maiores novidades da vanguarda europeia, que apresentava, entre tantos movimentos, o “Manifesto Futurista”, de F. T. Marinetti, com o intuito de enaltecer a guerra e a destruição da sintaxe de forma radical. Oswald liderou, através de jornais e na procura de companheiros para defender seus ideais poéticos, a propagação do modernismo, baseado nas correntes de vanguarda europeia, que seria lançado entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, na Semana de Arte Moderna, sob aplausos e vaias. O país, estava, como a literatura, em fase de mudança, dividido, claramente, entre o rural e o urbano. As cidades, principalmente São Paulo, conheciam uma rápida industrialização, causada pela Primeira Guerra Mundial, que proporcionava lucros somente à burguesia industrial, embora marginalizada pelo governo federal, voltado para o produção e a exportação do café. Nesse panorama, também aumentava, consideravelmente, o número de imigrantes europeus, sobretudo italianos, que se dirigiam tanto para a zona urbana quanto para a zona rural. A sociedade era, então, claramente dividida. Havia os barões do café e a alta burguesia lucrando e funcionários públicos e comerciantes, entre outros, sofrendo. São Paulo era o palco de uma gama considerável de trabalhadores, muitos deles anarquistas, responsáveis por uma série de greves históricas.


A Semana de Arte Moderna de 22 se apresentou como um ataque, duro e contundente, à aristocracia e à burguesia, dominante e impopular.Oswald, numa ida à França, em 1923, com Tarsila do Amaral, vislumbrou o que mais tarde constituíria a poesia Pau Brasil, a poesia brasileira de exportação, voltada para uma linguagem adequada aos novos conceitos poéticos, despertados pelo dadaísmo, pelo cubismo e pelo futurismo, além de inimiga principal dos sonetos de Olavo Bilac. Como observa Paulo Prado, no prefácio do livro de poemas “Pau Brasil”, lançado em 1925, um ano depois do manifesto, com o mesmo nome, “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”. Paulo Prado afirma mais, em seu prefácio: que, para Oswald, “a volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau brasil’”.
Para Paulo Prado, “a poesia 'pau-brasil' é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. Esse esforço, obviamente, vinha acompanhado de uma nova visão artística europeia, alimentada pelas andanças de Oswald pelo mundo das vanguardas. Como ele confessou mais tarde, num de seus tantos livros de memórias, o que importava para ele não era o marxismo, comentado como nunca àquela época, mas o futurismo de Marinetti, combatido pelas rodas literárias burocratas.
A visão empregada pelo livro de poemas Pau Brasil, no entanto, só pode ser devidamente explorada se tivermos um conhecimento do manifesto que o precedeu e, no fundo, acabou por constituí-lo, originado, obviamente, desse novo olhar de Oswald sobre Paris, sobre o Brasil e sobre o mundo. Se Oswald descobriu o Brasil em cima da Torre Eiffel, é porque descobriu que somos tão melancólicos quanto os europeus. O próprio Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, com referências diretas à infância, além dos desenhos, mostra um tempo que não existe mais, ou melhor, existe, porém em algum lugar recluso da experiência de Oswald como sujeito. Há uma pretensão na ingenuidade dos versos de Oswald, em suas quase-canções descompromissadas: é a pretensão de uma voz que, sabendo da sua melancolia, estagnação, permanência num passado remoto, quer a todo custo movimentar o discurso de vanguarda. Não há nada simplista nessa tentativa oswaldiana; pelo contrário, pode-se localizar em sua voz todo o princípio ativo da psicologia freudiana.

A melancolia antropófaga de Oswald (II)

Por André Dick

A “Antropofagia” de Oswald, por meio da produção do manifesto e dos poemas, para Haroldo de Campos, é “o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...), mas sob o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago”. Assim, o que Oswald realiza em sua obra representa os resíduos da poesia de Cendrars apenas em sua forma. Ele oferece ao leitor uma visão crítica da história, não encontrada no exotismo sublimado por Cendrars nas paisagens do Brasil que o encantaram, mas diz mais: o poeta sabe que não existe o Brasil que imagina – ou seja, o Brasil sem a “força de lei” –, por isso se faz melancólico. Ao mesmo tempo, o elemento antropofágico coloca Oswald entre os poetas de referência para a teoria da poesia concreta, por este movimento de antropofagia e (re)criação sobre elementos que isolam o Brasil do estrangeiro, e o coloca em contato com meios de produção eurocêntricos. Esta questão é muito mais complexa, como prova o movimento de Gregório de Matos Guerra, que, depois de sua passagem pela Europa, volta à Bahia, trazendo o Barroco na bagagem e fazendo uma literatura formalista num século em que o Brasil já estava começando a querer ser romântico. Como destaca Augusto de Campos, no artigo “Arte final para Gregório”, de O anticrítico, Gregório foi o “primeiro antropófago experimental da nossa poesia”, subvertendo a literatura de seu tempo e impondo a ideia de que o Barroco, no Brasil, não teve realmente “infância” ou “origem”, a exemplo do que observa Haroldo, já tendo nascido pronto, indo contra, justamente, a tendência da filosofia Ocidental – leia-se, de que a melancolia sempre esteve presente, tema caro a Haroldo de Campos, e a visão do paraíso inexiste.


Gregório, nesse refluxo de relações, não era baiano, mesmo nascido no Brasil, nem europeu, embora tivesse vivido em Portugal. O movimento antropófago de Oswald colocava o Brasil de volta aos trilhos de um diálogo com outras literaturas, sem ficar restrita à ideia de que o subdesenvolvimento econômico – que para Haroldo de Campos e Octavio Paz é uma falácia, justificadamente –, muito recorrente nas obras de alguns críticos brasileiros, impede uma atitude mais crítica diante da obra do outro. A alteridade (ou outridade, para utilizarmos um termo de Octavio Paz) se justifica não apenas como visão de mundo, mas como espelho de uma realidade que nos cerca. Como justifica Haroldo de Campos em sua análise sobre Gregório, em O sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, estudo que se origina em seu ensaio “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” (1980), não é possível justificar o logocentrismo sem a ideia de que a literatura deve ser criada a partir de um eixo central, baseado em “raízes nacionais”. Daí, para Haroldo de Campos, surge a necessidade da diferença (itálico do autor), isto é, “o nacionalismo como movimento dialógico da diferença”.
No “Manifesto da Poesia Pau Brasil”, do mesmo ano em que saiu a obra de poemas respectiva ao projeto, Oswald fazia o programa de sua trajetória existencial, programa este, nas palavras de Haroldo de Campos, de “dessacralização da poesia, através do despojamento da ‘aura’ de objeto único que circundava a concepção poética tradicional”. Tal aura, para Haroldo, inicia, a partir da visão de Walter Benjamin, com o desenvolvimento de meios da civilização contemporânea, a industrial, em seu auge, através da fotografia, do cinema, das técnicas de impressão. O dadaísmo também estava por trás, com sua miscelânea de palavras, refazendo todos os passos que uma obra deveria seguir para ser considerada “de vanguarda”. Com ele, o cinema possuía, mais do que o teatro ou a pintura, a realização mais próxima do que o indivíduo moderno queria da obra de arte, que, ao invés de propor a “ilusão da realidade”, buscava o real mais intenso, através da montagem de um grande número de “imagens parciais, sujeitas a leis próprias”.


O manifesto proposto por Oswald era um conjunto de referências ao universo cotidiano, mas era sobretudo melancólico. O poeta está falando de um universo que nos caracteriza, mas, que, reitera-se, ao mesmo tempo, não existe. Sua primeira proposição é clássica: “A poesia existe nos fatos”. É seguida de um olhar sobre a realidade circundante, com citação de Wagner (Oswald, aqui com saudade da Europa, visualiza um músico de lá num cenário que lhe é estranho):

Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Oswald queria mostrar desde “lado doutor” do Brasil, “Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens”, passando por “Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas-de-casa, tratando de cozinha”, até “Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos”. Queria “Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem”. Denominou a poesia então como “Ágil e cândida. Como uma criança”, indo contra o “gabinetismo, a prática culta da vida”, clamando por uma “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos, como somos”. É interessante perceber que Oswald deseja uma língua sem influência da modernidade europeia, que traz em seus trabalhos de poesia e prosa.
Finalmente, pregou a poesia “Pau Brasil” como “de exportação”, conduzindo seu olhar para o hibridismo das artes, com a evolução nos meios de comunicação, segundo ele “um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo”. O “Manifesto da Poesia Pau Brasil” é uma porta de entrada no “Manifesto Antropófago”. Criado em razão do contato de Oswald e Raul Bopp – o clássico autor de Cobra Norato – com um quadro – batizado de “Abaporu”, “antropófago”, em tupi-guarani – de Tarsila do Amaral, o manifesto, publicado em maio de 1928, no primeiro número da Revista de Antropofagia, assumiu de vez a antropofagia já vislumbrada no primeiro manifesto com um novo texto telegráfico, indicando novos rumos para uma poética brasileira, mas não se restringindo à literatura. Oswald sonhava, desta vez, com uma atitude filosófica: “Só a antropologia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. A antropofagia era vista como “Única lei do mundo”, “Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos”. Consumia William Shakespeare por vias selvagens, na proposição “Tupy, or not tupy that is the question”.


Com tal postura, Oswald se colocava, como ele mesmo observa, “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucuras, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Por isso, em cápsulas telegráficas, ponderava: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais”; “Nunca fomos catequizados” (ao mesmo tempo em que lembrava de figuras religiosas, sem esquecer da contundente crítica); “Fizemos foi carnaval”; “Expulsamos a dinastia”. Tudo, obviamente, o que não corresponde à realidade: de fato, estamos diante de um poeta melancólico, influenciado diretamente pelas descobertas de vanguardas europeias. Utilizando o vocabulário do “pai” da psicanálise, Oswald queria a “transfiguração do Tabu em totem”, inaugurando a antropofagia – queria, na verdade, um mundo que só existia em suas reminiscências de uma infância perdida. Esta poesia, baseada numa linguagem primitiva, como já foi referido anteriormente, busca nos fatos, como afirmava um dos tópicos do manifesto, a razão para a poesia. Na primeira parte de Pau Brasil, Oswald recorta momentos da história brasileira com uma dose peculiar de sátira. Nos poemas “A descoberta” e “As meninas da Gare”, por exemplo, o poeta brinca com trechos da “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha. Já em “Riquezas naturais”, Oswald brinca com a própria língua portuguesa arcaica, abolindo a sintaxe clássica e as vírgulas. A seção “Lóide brasileiro”, por sua vez, traz um dos poemas de Oswald mais banhados em sátira, “Canto do regresso à pátria”, uma brincadeira confessa com o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. A focalização do cotidiano, outra característica da poesia Pau Brasil, ligada ao universo paulista, no poema “Anúncio de São Paulo” e fluminense, no poema “Noite no rio”, fazem por encerrar com chave de ouro o livro de Oswald. “Noite no rio”, por sinal, resume todas as características de sua poesia. Trata-se de um poema com encadeamento de versos com técnica cinematográfica, centrado no cotidiano, no nacionalismo e na brincadeira, por vezes incontida, com o sentido lógico das expressões, e, claro, profundamente melancólica em sua tentativa de tornar presente o que é passado, abrigado na nostalgia de um país anterior à "força de lei".

sábado, 10 de abril de 2010

Acídia e melancolia em Cervantes (I)

Por Nicole Cristofalo

Dentro dos tratados teológicos do período da Idade Média, vemos a acepção do espírito acidioso definir-se através dos monges tomados por uma forte sonolência, próximo ao meio-dia, acordando famintos e com sede. Inquietos e insatisfeitos, suas mentes fantasiavam todo o tempo, desejando viverem condições diferentes das suas. Este mal-estar era entendido como uma doença grave, e mesmo um pecado do qual não havia salvação. Ao longo do tempo, a acídia começou a se associar ao espírito preguiçoso, ao invés da “angustiada tristeza e do desespero” daqueles que desenvolviam suas características, como afirma Giorgio Agamben, no livro Estâncias.


No presente ensaio, levantamos a hipótese de que Miguel de Cervantes, conhecedor dos tratados sobre a acídia (seu pai era médico-cirurgião, e sem dúvida tinha acesso a estes textos), tenha construído o personagem Sancho Panza utilizando-se de diversas características do espírito acidioso, com o intuito de que os leitores também o confundissem como um sujeito preguiçoso, enquanto o que ocorre, na verdade, é uma comparação entre certas características da acídia deste personagem e a melancolia de don Quijote.
Durante a leitura de El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, percebemos que Sancho reclama demais por alimento e sono, o que provoca riso no leitor, além de a todo momento fantasiar sobre o seu governo na ilha prometida pelo seu senhor, e sempre reclamar da maneira como precisa servi-lo para conseguir alcançar o que lhe foi prometido. Não por coincidência, lemos as seguintes características da acídia em Estâncias:

“O refúgio fácil do sono não é senão um ‘travesseiro’ que o diabo oferece ao acidioso para lhe tirar qualquer possibilidade de resistir ao pecado”.

“(A acídia) trata-se da perversão de uma vontade que quer o objeto, mas não quer o caminho que a ele conduz e ao mesmo tempo deseja e obstrui a estrada ao próprio desejo”.

“Ao mesmo tempo em que a sua tortuosa intenção abre espaço à epifania do inapreensível, o acidioso dá testemunho da obscura sabedoria segundo a qual só a quem já não tem esperança foi dada a esperança, e só a quem, de qualquer maneira, não poderá alcançá-las foram dadas metas a alcançar”.


A esta última característica é interessante observar o porquê de Don Quijote ter oferecido a Sancho o governo de uma ilha. Talvez, proporcionar um salário ou qualquer outro objeto que estivesse ao seu alcance não o teria motivado a trabalhar como seu escudeiro. Em determinado momento do livro, ele até mesmo reclama por um salário, mas percebemos que não é esta a sua real motivação para seguir Don Quijote. Sancho deseja se tornar governador da sua ilha, e se encontra insatisfeito de sua atual condição (como os monges acidiosos), fantasiando sua posição futura mas, ao mesmo tempo, queixa-se do caminho que necessita fazer para alcançar seu objeto de desejo, como mencionado na citação realiza a cima. Em diversos momentos do livro, apesar da imagem de preguiçoso e tonto, vemos um Sancho “melancólico” (melhor dizendo, acidioso), quando Cervantes deixa em evidência o seu real espírito, quando, por exemplo, está pensativo sobre sua situação e receoso quanto à aquisição da sua ilha para governá-la.

Quijote se quedó a caballo descansando sobre los estribos y sobre el arrimo de su Lanza, lleno de tristes y confusas imaginaciones, donde le dejaremos, yéndonos con Sancho Panza, que no menos confuso y pensativo se apartó de su señor que él quedava.”

Mas por que Cervantes se utiliza da acídia para caracterizar o segundo personagem mais importante de seu romance?
Segundo Agamben, durante a Idade Média o espírito acidioso começou a confundir-se com o melancólico:

“A prova da convergência precoce entre melancolia e tristitia-acedia, que aparecem até como dois aspectos da mesma realidade, está em uma carta de São Jerônimo: ‘Há aqueles que, devido à umidade das celas, aos imoderados jejuns, ao tédio da solidão e à exagerada leitura, no entanto de dia e de noite (outros monges) cantam alto nos seus ouvidos, acabam na melancolia e precisam mais dos calmantes de Hipócrates que de nossos conselhos’”.

Há quem diga que Sancho se assemelha muito mais a Don Quijote do que podemos pensar numa primeira leitura (em diversos momentos do livro, lê-se comentários que questionam se Sancho não compartilha da loucura do seu senhor). Sendo assim, trabalharemos a ideia de que Cervantes busca colocar lado a lado um espírito melancólico (Don Quijote), e um espírito acidioso (Sancho Panza) disfarçando suas características a ponto que “leyendo vuestra historia el melancólico se mueva a risa”. Através de uma leitura cuidadosa, o autor nos leva a entender a diferença entre o acidioso e o melancólico, “doenças” muito confundidas naquela época.


Se a “leitura exagerada” é um dos motivos que podem levar o espírito tanto à melancolia quanto à acídia, o desejo daquilo que é inacessível (para Sancho, o governo de sua ilha prometida, e para Quijote a sua Dulcinea del Toboso) também se torna um ponto de intersecção entre as duas manifestações, assim, como afirma Agamben, o fato da acídia e a melancolia não constituírem “apenas uma fuga de..., mas também uma fuga para..., que se comunica com seu objeto (de desejo) sob a forma da negação e da carência”. Além disso, “na insistente vocação contemplativa do temperamento saturnino, continua vivo o Eros perverso do acidioso, que mantém o próprio desejo fixo no inacessível”.
Assim, percebemos que ambos os personagens saem de casa (fuga de) em busca de algo (fuga para) que justifique suas ações.
Outro ponto em comum entre as duas personagens é que ambas “doenças do espírito” causam pensamentos fantasiosos, “figuras ilusórias que podem ser interpretadas ora de um, ora de outro modo”. Apesar do pensamento fantasioso não estar tão presente no personagem do Sancho Panza como vemos em Don Quijote, aquele também se permite a acreditar em “cavaleiros andantes”, “feiticeiros” e chega a até mesmo subir no cavalo de madeira Clavileño e cavalgar pelo céu.
Acídia e melancolia em Cervantes (II)

Por Nicole Cristofalo

Cervantes, conhecedor dos tratados teológicos e médicos sobre a melancolia, logo no primeiro capítulo descreve Don Quijote como um fidalgo de cinquenta anos: “Era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro”, características estas que aparecem nos tratados de medicina do século XVI quando eram mencionados os tipos melancólicos. No capítulo XX, o autor espanhol descreve: “Miró también Don Quijote a Sancho y viole que tenía los carrillos hinchados y la boca llena de risa, con evidentes señales de querer reventar con Ella, y no pudo su melancolía tanto con él, que a la vista de Sancho pudiese dejar de reírse”, demonstrando que o seu personagem cultiva o caráter melancólico por excelência, e chamando a atenção para um momento onde há uma quebra deste regime. O que se confirma igualmente nesta passagem: “Volvió Sancho a cobrar la albarda, habiendo sacado a plaza la risa de la profunda melancolía de su amo y causado nueva admiración a Don Diego”.


Don Quijote é chamado de El Caballero de la Triste Figura. Essa expressão aparece cerca de 30 vezes durante o livro, sendo que, na segunda parte, Cervantes altera sua alcunha para El Caballero de los Leones, não tão apropriada a Don Quijote como a primeira e, portanto, se tornando motivo de riso. Além disso, é interessante observar que “la persona melancólica esta influida por el signo de Saturno, su elemento es la tierra, su estación el invierno, se encuentra en edad avanzada y lo que caracteriza es el ingenio y la agudeza de la razón. No sin razón Cervantes llama a Don Quijote en el título de la obra el ingenioso hidalgo”, como afirma o teórico Theo Reichenberger.
O excesso de leitura é uma das causas da melancolia segundo os tratados médicos daquela época. Interessante notar que já no primeiro capítulo de Don Quijote vemos descrito este processo, e o que provoca: “En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el celebro de manera, que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles”. Além de citar a fantasia na qual o personagem mergulha em decorrência do excesso de leitura, Cervantes atribui a Don Quijote uma das características fundamentais da melancolia: o cérebro seco.


Acreditava-se que os espíritos se constituíam da forma mais pura do sangue e, atraídos pelo ser amado, não retornavam ao corpo do amante. Portanto, sobrava apenas o sangue em sua consistência pesada e impuro, deteriorando o corpo da pessoa e tornando-a melancólica. Os vapores produzidos pelo sangue fluíam para a sua cabeça e secavam o cérebro, provocando, além de tudo, visões e delírios. Segundo o médico e filósofo espanhol Juan Huarte de San Juan, “también, en los cuatro humores que tenemos, ninguno hay tan frío y seco como la melancolía; y todos cuantos hombres señalados en letras ha habido en el mundo dice Aristóteles que fueron melancólicos”. Interessante notar que para ele, o cérebro quente e seco proporcionava maior aptidão de memória, enquanto que o cérebro frio e seco, de raciocínio. Desta forma, a alcunha de ingenioso hidalgo novamente confirma o seu propósito.
Se a melancolia provoca visões e delírios, podemos vê-la influenciar Don Quijote ao longo de todo o livro, quando afirma lutar com um gigante enquanto, na verdade, está dormindo, ver castelos no lugar de estalagens e princesas no rosto de mulheres comuns. Segundo Roland Barthes, em A preparação do romance II, Don Quijote é um exemplo de imitação daquilo que se lê, e podemos dizer que, junto a esta imitação vem o desejo de se tornar o objeto descrito no livro e de fantasiar diante da sua impossibilidade, outra característica fundamental da melancolia.
O amor, naquele período, era fortemente associado à melancolia. Médicos diziam que suas características se assemelhavam e se confundiam, sendo o primeiro a causa do segundo. Cervantes, atento a tal afirmação, se vale da necessidade de todo cavaleiro andante possuir uma señora, e faz com que Quijote eleja uma princesa. Porém, o autor a torna um objeto de desejo impossível e tão distante que o cavaleiro nunca a encontrará da forma como a idealiza, característica típica do melancólico que permite seu pensamento divagar sobre o ser amado. Quando Quijote acredita ter encontrado Dulcinea del Toboso, está enfeitiçada e transformada em uma camponesa de aspecto feio e mau cheiro, o que lhe causa grande frustração e sofre por ainda não poder tê-la. Ao longo do livro, Quijote sofre com a perda (Freud viria a chamar este sentimento de luto por um objeto que nunca se obteve) do seu objeto de desejo, o que o faz sempre fantasiar e dedicar-se a ele fielmente.


É importante mencionarmos que a Espanha do final do século XVI e início do XVII estava envolta numa atmosfera de melancolia, como afirma Augustin Redondo: "Después de los años 1570-1580, se asiste progresivamente a una inversión de signo y a la aparición de señales negativas, con relación a la economía y a la demografía: dificuldades de alimentación y enfermedades -pestilencias-, paro de actividades productivas, aumento de la gente sin trabajo. Está anunciandose la grave crisis de los últimos años del siglo XVI y de los primeros del siglo XVII (...). Época de malestar y angustia que traduzen perfectamente las Cortes de este momento histórico, en las que se habla de una Espanha morinbunda, de hambres, de pestes y de muertes, de ánimos tristes y melancólicos. Entonces es cuando se desarrolla sobremanera el tema del mundo al revés, de la vanidad de las cosas y del desengaño, acentuado por el espíritu de la Contrarreforma. El propio Consejo Real, en unas consideraciones entregas al joven Felipe III, habla del miserable estado en que están los vasallos del monarca y añade que ‘no es mucho que vivan descontentos, afligidos y desconsolados’, o sea vencidos por la melancolía”. Portanto, Cervantes estava imerso na questão da melancolia, e atribui suas características ao personagem principal de seu livro refletindo o espírito de sua época. Talvez, tenha visto a importância de trabalhar a acídia e a melancolia, ao mesmo tempo em que procura causar o riso no leitor, como sugeria o conselho de Castilha, “alentando ánimos marchitos y espíritus melancólicos”, valendo-se do mal de quem o lê para apontar o lado cômico desta “doença do espírito”, de maneira tão irônica como inovadora.