domingo, 21 de março de 2010

Sá-Carneiro e Pessoa: reis de toda esta incoerência (I)

Por André Dick

O poeta português Fernando Pessoa, nascido em Lisboa, em 1888, e responsável pelas personas – seus conhecidos heterônimos – mais conhecidas do universo literário (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares), ao se dedicar à poesia, não enlouqueceu: nos deu suas incursões em poemas. Segundo a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, em seu estudo Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro, baseada na psicanálise de Jacques Lacan, o Imaginário do poeta – que representa a necessidade de o indivíduo lidar com determinados traços em sua poesia: conceitos, temas, palavras, todas vindas de seu inconsciente que, estruturado como uma linguagem, o constitui como escritor – “é terrivelmente verdadeiro, na medida em que nele fala o desejo, na medida em que, nele, o real se transveste e se desvenda”. Nesse sentido, o poeta, ao transitar entre o Imaginário e o Simbólico – o Imaginário simbolizado –, faz com que o seu “único real” seja “seu texto; é neste que um simulacro de sujeito se tece, revelando, por uma prática extrema de linguagem, que todo sujeito é uma ficção”.


Cada vez mais se percebe que Pessoa representa a legitimização do pensamento de que a poesia é resultado de uma passagem pela crítica, não estritamente a teórica, mas aquela que carrega reflexão suficiente para saber das suas qualidades e defeitos, falhas e virtudes e, sobretudo, de seu fracasso – de que todo sujeito, pleno, clássico, é uma ficção. Diante da questão levantada por Pessoa e seus heterônimos, Roland Barthes tem razão quando escreve: “O que a escrita exige [...] é que ela sacrifique um pouco de seu Imaginário, e que assegure, assim, através de sua língua, a assunção de um pouco de real”. Por isso, segundo Barthes, a escritura é exatamente uma “atividade estranha [...] que estanca milagrosamente a hemorragia do Imaginário”, o qual, como ele aponta, se dá em seu grau pleno quando o autor escreve tudo o que quer a seu respeito, inclusive o que é embaraçoso, no limite com o Simbólico – e, no caso de Pessoa, com suas personas. É preciso a escritura, o Simbólico, para obter o controle sobre esse Imaginário – ou dispersá-lo ainda mais.
Mas o próprio Imaginário, depois de constituído, por meio de diversas leituras e releituras e de transposições autorais, não seria também um sistema consciente, lúcido, da personalidade humana? Até que ponto o autor não sabe que está escrevendo um texto numa determinada linha, guiado por parâmetros, nos quais se insere e faz a comparação de sua obra com outras, que definem seu Imaginário? Afinal, o Imaginário não seria a “linguagem pela qual o enunciador de um discurso (entidade puramente linguística) ‘preenche’ o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou ideológica)”? Não haveria sujeito da enunciação mesmo dentro da linguagem e do Imaginário? Não para Barthes, pois para ele os diversos imaginários que existem são filtrados apenas pela escritura, e quem as escreve é um “ser de papel”, fora da realidade – mesmo que ele exista também como persona literária.
O poeta e crítico mexicano Octavio Paz escreveu, num ensaio sobre Fernando Pessoa, que os poetas não têm biografia e que sua obra é sua biografia. No entanto, não podemos desconsiderar que o Imaginário seja composto também pelas leituras e contatos que o sujeito teve no assim chamado “mundo real”, no caso de Pessoa, “externo à linguagem literária”. É este Imaginário (Eu Ideal) que dará origem ao Simbólico (Ideal do Eu). Os dois estão interligados através da subjetividade do poeta, no caso de Fernando Pessoa em suas outras facetas. Todas as suas criações são intermediadas por figuras imaginárias, que ele, como escritor, procura transformar em texto.
A partir disso, devemos lembrar que Fernando Pessoa, em sua recriação do inconsciente, tinha verdadeira admiração por Mário de Sá-Carneiro, não só por sua obra poética, mas também por sua amizade, tanto que o homenageia, de forma especial, em dois poemas: um quando o amigo ainda era vivo, intitulado “Opiário”, que será visto mais adiante, pertencente à obra futurista de seu heterônimo Álvaro de Campos, e outro lembrando sua morte, chamado Sá-Carneiro, com os versos “Hoje, falho de ti, sou dois a sós”, que dão a exata dimensão da proximidade que tinha com o “esfinge gorda” – e que povoava o seu Imaginário.
Era bastante profunda a ligação entre os dois, sobretudo por meio de correspondências, onde podiam ser encontradas muitas revelações surpreendentes, e projetos artísticos (como a revista modernista Orpheu).


Nascido em Lisboa, a 19 de maio de 1890, sendo, portanto, da mesma geração de Pound, Joyce, Kafka, Oswald de Andrade, um dos pais do Modernismo Brasileiro e, claro, de Fernando Pessoa, nascido dois anos antes, na mesma cidade, Sá-Carneiro talvez seja, no Brasil, o menos conhecido de todos, o que não tira o brilho de sua obra poética. Ele perdeu a mãe cedo, em 1892, e logo aos l7 anos foi para a França, com o objetivo inicial de estudar Direito, o que era absolutamente comum no período. Aluno brilhantemente precoce, como Rimbaud, que fugiu incontáveis vezes de sua cidadezinha natal, Charleroi, Sá-Carneiro manteve com Pessoa uma ligação acima de tudo existencial, que nos remete àquela entre Rimbaud e Paul Verlaine na Paris de alguns anos antes (e poetas como o francês Guillaume Apollinaire e o italiano Giuseppe Ungaretti, por exemplo, vieram mais ou menos na mesma época de Sá-Carneiro morar na capital da França, quando cresciam os movimentos de vanguarda).
Sá-Carneiro tem participação tão importante no progresso literário do Modernismo português quanto Pessoa, mas, ao contrário deste, costuma ser esquecido. A construção de seus poemas, com a mesma agudeza de Rimbaud, onde se inclui um corte de verso preciso, tessituras sonoras inteligentes e ritmo fluente, não é fácil de ser encontrada. Em muitos aspectos, acaba superando o próprio Pessoa, cujo estilo é mais explosivo e intuitivo, buscando uma união entre pensamento filosófico e sensibilidade poética.


A poesia de Sá-Carneiro está situada entre dois extremos: a morte e a vida. Seus poemas reúnem sentimentos beirando uma lâmina que divide essas duas extremidades. E isto com tal força que não se nota nem na poesia de Pessoa e de seus heterônimos. Enquanto o projeto estético de Pessoa foi se multidividir, o de Sá-Carneiro foi banir qualquer tipo de esperança de uma vida comum, ou seja, do cotidiano, selecionando o amargo e o irônico, como Cesário Verde. No entanto, como escreve Leyla Perrone-Moisés, a crise de Sá-Carneiro, “mesmo em sua melhor expressão literária, permaneceu no terreno psicológico individual. Como uma mosca presa entre dois vidros, ele buscou uma saída impossível entre o ‘eu’ e o ‘ideal do eu’”, o que fez com que não conseguisse equilibrar, em sua vida existencial, o Imaginário e o Simbólico.
Em seus melhores poemas, Sá-Carneiro superou Pessoa – mesmo quando influenciado por ele. Escritos como “Manucure” e “Apoteose”, feitos por Sá-Carneiro em 1915, são inspirados claramente no Futurismo de Filippo Tommaso Marinetti e de Álvaro de Campos, o heterônimo futurista de Pessoa, um homem totalmente adaptado às transformações do século XX, das fábricas, das máquinas e da velocidade, para quem “a alma humana é um abismo”, trabalhando com inovações gráficas e ideias surrealistas, dando “vida verbal” ao som das máquinas e tornando a página em si um elemento vivo do texto – o que muitos queriam ter feito a partir de Mallarmé. Segundo Pessoa, Campos nasceu no mesmo ano do amigo, 1890, sendo um tipo que não consegue se adaptar às condutas sociais, ficando eternamente deslocado.


A obra de Sá-Carneiro, no entanto, não se enquadra facilmente dentro de um determinado movimento estético. Ela marca um aproveitamento de ideias do Simbolismo em contato, forte e contundente, com todas as vanguardas existentes no início do século XX, quando o mundo literário tinha como centro Paris, onde se davam os novos rumos estéticos que as artes adotavam. A primeira exibição de cinema havia acontecido numa noite chuvosa de 1895, atraindo centenas de pessoas na enigmática Paris; as indústrias e suas máquinas se fortaleciam; os cafés e boulevards eram os grandes pontos de encontro dos poetas e artistas, aqueles que antecipavam o novo em suas obras; as pinturas ganhavam novas formas de expressão e estilo; em suma, os tempos eram outros.
Sá-Carneiro e Pessoa: reis de toda esta incoerência (II)

Por André Dick

Como observa Fernando Paixão, um dos maiores estudiosos do poeta português no Brasil, Sá-Carneiro é o “poeta das sensações”, “voltado para a construção de um eu-lírico que oscila entre um plano idealizado e, em contraposição, a adversidade do mundo real” – entre o Imaginário, o Simbólico e o resíduo do real. É um poeta com traços claros do Simbolismo, uma vez que gosta de lidar com pensamentos de uma maneira peculiar e distorcida, procurando a essência do ser humano, a purificação, por meio da qual o espírito atinge o espaço infinito, na busca do vago, do sonho e da loucura, típica de quem está tentando chegar ao limite. Nesse sentido, também o movimento do Paulismo, elaborado por Pessoa e presente em poemas seus, como “Impressões do crepúsculo” e “Chuva oblíqua”, é quase uma extensão do Simbolismo.


Leiamos, abaixo, a estrofe final do antológico poema “Álcool”, título que sintetiza a embriaguez em que se encontra o espírito de Sá-Carneiro, que parece querer se transbordar:

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
E só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Essa estrofe, onde há um duelo entre drogas (ópio, morfina e álcool), estados orgânicos (loucura e sanidade) e cores, representadas pela manhã e noite, é recuperada por Álvaro de Campos, no poema “Opiário”, feito em homenagem a Sá-Carneiro, mais especificamente nas 1ª, 8ª e 15ª estrofes colocadas em ordem, abaixo:

É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me um tédio.

Assim como as sensações de Mário de Sá-Carneiro são trabalhadas com minúcia e personalidade, as de Álvaro de Campos não ficam atrás, representando o sentimento de dor, decepção e vida sem saída, por meio de versos fortes, como “Sou um convalescente do Momento / Moro no rés-do-chão do pensamento / E ver passar a Vida faz-me um tédio.” Nesses versos, encontram-se muitas características perceptíveis nos poemas de Sá-Carneiro, sobretudo a subjetividade do poeta, que mobiliza uma imaginação voltada para o vazio da alma – no sentido lacaniano, da inconsciência –, para o além, na esperança de encontrar outra realidade, seja através de drogas, seja através de delírios literários. A busca de outro lugar parece ser o objetivo tanto de Sá-Carneiro quanto de Álvaro de Campos.
Outro poema de Sá-Carneiro, “Estátua Falsa”, deixa transparecer uma ligação entre o Simbolismo e o Futurismo:

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Descem na minh’alma veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

A presença do simbolismo fica evidente no trabalho com os sentidos, com o tato das cores (“ouro falso”, “olhos se douram”, “esfinge sem mistério no poente”, “gomos de luz em treva”, “sombras”) e com a musicalidade dos versos, tão sugerida por Paul Verlaine (“A música acima de tudo”, costumava dizer ele), enquanto o Futurismo, lançado por Marinetti em 1909, se evidencia no sentimento revoltado, muito à frente do romântico, dos seguintes versos: “Já não estremeço em face do segredo; / Nada me aloira já, nada me aterra: / A vida corre sobre mim em guerra, / E nem sequer um arrepio de medo!”. Sá-Carneiro, desta vez, entra em combate com sua própria dor, ignorando o medo e a morte, daí sua poesia ser tão extremista.


O Paulismo de Pessoa também fica claro dentro desse panorama de dor que Sá-Carneiro traça em seus versos. O poema de Pessoa “Impressões do crepúsculo”, por exemplo, possui versos que certamente influenciaram Sá-Carneiro:

Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...
Dobre o longínquo de Outros sinos...Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente...Corre um frio carnal por minh’alma...
Tão sempre a mesma, a Hora! Balouçar de cimos de palma!...

Essa sensação de vazio transmitida pelos versos de Sá-Carneiro e Pessoa são absolutamente comuns nos poemas de Álvaro de Campos, a face mais belicosa de Pessoa, como “Grandes são os desertos...”, onde se lê:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Outro poema que pode exemplificar essa ligação estética entre Sá-Carneiro e Álvaro de Campos é o interessante “Apontamento”. Seus primeiros versos podem ser lidos abaixo:

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Como escreve Leyla Perrone-Moisés, “os melhores poemas de Sá-Carneiro assemelham-se aos de Pessoa, pela temática da perda do ‘eu’”.


“Bicarbonato de soda” também comprova essa ligação, como pode se comprovar nos seguintes versos, em que o estado de alma ganha traços enigmáticos:

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao pôr-do-sol do esforço...

A semelhança de estilo entre os dois, no entanto, fica explícita nos poemas futuristas “Manucure” e “Apoteose”, já citados neste trabalho. Compostos em 1915, inspirados na vanguarda que se manifestava cada vez com maior força e nos poemas de Álvaro de Campos, sobretudo “Ode marítima” e “Ode triunfal”, trata-se de dois poemas com grau de modernidade insuperável, apresentando inovações gráficas (letreiros, palavras dispostas no melhor estilo de Guillaume Apollinaire, dos antológicos caligramas, no verso solto “É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe...!”, de “Manucure”, números soltos, nomes de jornais e artistas daquele período, anúncios, marcas, representações de sons de máquinas), numa enxurrada de efeitos que remetem o leitor ao poema “semiótico” mais conhecido e debatido do século passado, Un coup de dés, escrito por Stéphane Mallarmé.
O espírito vanguardista é a melhor característica desses poemas de Sá-Carneiro, não só pelos atrevimentos visuais. Versos com uma consciência excepcional, diante de um novo horizonte que, então, o século XX já oferecia, como estes abaixo, de “Manucure”, se destacam em qualquer antologia da modernidade:

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver, e faiscar

Sá-Carneiro, porém, ao contrário dos heterônimos de Fernando Pessoa, existia realmente e com ele todos os sofrimentos que um poeta trágico pode ter – sobretudo na falha tentativa de conviver com o Imaginário e o Simbólico. Enquanto Pessoa conseguiu se multidividir em várias personas, Sá-Carneiro sucumbiu ao próprio e ferino dualismo com o qual não conseguiu viver. Seu destino foi trágico: suicidou-se no Hotel Nice de Paris, tomando uma dose fatal de estricnina, aos 26 anos de idade, quando sua linguagem se dirigia à plenitude, ao estágio mais alto de literatura, deixando a poesia para trás, como Rimbaud fez ao partir para a África.
Assim como é necessário admirar Fernando Pessoa e seus heterônimos, é indispensável notar que Sá-Carneiro tem influência básica no desenvolvimento da poesia portuguesa durante a Modernidade. Sua história não está reduzida ao fato de ter trocado cartas com Pessoa ou ter cometido suicídio no auge da juventude e inspiração poética. Ele foi o “rei de toda esta incoerência”, como deixa claro no poema “A queda”, ao lado de todos os reis que conhecemos muito bem.

domingo, 14 de março de 2010

Uma análise do poema “Manias”, de Cesário Verde

Por Nicole Cristofalo

No dia 23 de janeiro de 1874, foi publicado no Diário da Tarde, de Lisboa, o poema “Manias”, de Cesário Verde:

O mundo é velha cena ensanguentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, — hoje uma ossada —,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância, quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

Buscaremos contextualizá-lo, e apontar possíveis interpretações por meio de textos críticos de Helder Macedo e Leyla Perrone-Moisés.


Neste poema, um soneto petrarquiano, Cesário descreve a tensão entre os valores da mulher da cidade e os valores da mulher do campo (ainda que esta última não seja mencionada explicitamente no poema). Sabemos dessa relação por conhecermos outros poemas do autor português em que exalta os costumes do campo e critica os da cidade, como afirma Helder Macedo: “Ao nível pessoal, a cidade significa a ausência, a impossibilidade ou a perversão do amor, e o campo a sua expressão idílica. Ao nível social, a cidade significa opressão, e o campo, a recusa da pressão e a possibilidade do exercício da liberdade”. Cesário critica os valores que a modernização e a industrialização trouxeram para as cidades portuguesas, seus costumes importados das cidades europeias, enquanto exalta os valores idílicos: “ao identificar-se com o povo que mantém ‘as tradições antigas, primitivas’, que lhe permitem apreender ‘a formidável alma popular’ ('Nós'), Cesário está a rejeitar o artifício do modelo industrial das nações do Norte adoptado em Portugal pela sua própria classe burguesa e citadina”. Tal postura se reflete em alguns de seus poemas sobre o amor da fase de 1874, mesmo período de “Manias”, em que a mulher da cidade é descrita como fria, mesquinha, e alguém que enxerga o homem apenas como um instrumento de seus caprichos, vindos dos valores da nova burguesia portuguesa.
Na primeira estrofe de “Manias”, Cesário comenta as faces trágicas do mundo, como se fosse “mania” dele a de ser uma “cena ensanguentada” e “picaresca”, uma “farsa”, ou uma “tragédia romanesca”. Para exemplificar, descreve a relação submissa entre um rapaz e uma mulher cujos valores mesquinhos e altivos refletem a burguesia que estava crescendo nas cidades daquele momento. No início da segunda estrofe, tomamos conhecimento do falecimento do rapaz (apesar de não sabermos as circunstâncias, o poema nos faz suspeitar de um suicídio, tamanha a submissão dele pela mulher “perversíssima” que é exposta ao longo do texto). Cesário descreve o jogo de sedução da mulher da cidade, repleto de caprichos (“cheia de jactância quixotesca”) e de arrogância (“Concedia-lhe o braço, com preguiça, / E o dengue, em atitude receosa”). Na segunda e terceira estrofes, vemos que se trata de uma mulher velha e de má aparência (“(...) a déia já rugosa”), além de “(...) esquálida e chagada”, e que se mostra inferior e temente apenas a Deus (“Levava na tremente mão nervosa, / O livro com que a amante ao ouvir missa!”), refletindo, além da atitude orgulhosa, como se fosse inferior apenas a Deus, também o costume beato português.
O tom irônico rodeia todo o poema, desde o título (“Manias”) até o último verso (“O livro com que a amante ao ouvir missa!”). Cesário chega a até mesmo transformar a imagem da mulher numa figura grotesca, uma senhora enrugada, velha e afetada com seus dengues de burguesa. Interessante citarmos a seguinte afirmação de Leyla Perrone-Moisés: “A propósito, é de observar-se que Cesário raramente é irônico; a ironia supõe uma superioridade do enunciador, e Cesário coloca-se quase sempre no mesmo nível que as pessoas por ele descritas, ao rés de seu tema”. Portanto, este poema se pronuncia como uma exceção à afirmação da crítica citada. Cesário procura se identificar com os valores do povo rural, e, ao criticar a burguesia da cidade, precisa se colocar numa posição superior, e apontar, segundo Macedo, “a possibilidade de outras atitudes em relação à mesma realidade”. Resgatar o amor campestre, ingênuo e sem caprichos, causando um desenlace positivo aos rapazes que se enamoram, a não se tornarem “– hoje uma ossada –”.


Outro ponto interessante para discutirmos sobre este poema de Cesário Verde é a relação subjetiva e objetiva do autor em relação à realidade que trata em seus textos, como o soneto “Manias”. O poema é descrito partindo das impressões que causou no narrador a história de um rapaz que se apaixona por uma mulher da cidade, arrogante e fria, se colocando submisso a ela, e provavelmente morrendo por conta desse cruel jogo de sedução. Segundo Macedo, “A observação do real por parte do narrador e o real por ele observado tornam-se assim, perante o poeta propriamente dito, em dois fenômenos diferenciados mas complementares e interdependentes. São ambos significantes da visão totalizante do poeta e, como tal, da mesma maneira que as personae têm aparência objectiva, assim também os elementos objectivos do real são susceptíveis de uma valorização subjectiva”. Porém, ainda que o poema parta das impressões subjetivas do autor, que compartilha com seus personagens da realidade que descreve no poema, ao mesmo tempo ele se distancia e seus personagens não necessariamente possuem os mesmos valores e opiniões que o autor. Para Macedo, “(...) Cesário incorpora no seu método realista um mecanismo de autocorrecção – que revela a dupla posição do poeta como, simultaneamente, parte da realidade dinâmica que observa e observador dinâmico da realidade de que é parte”. Cesário tem conhecimento da teoria de Taine, que procura, ainda segundo Macedo, “rejeitar a fundamental antinomia implícita no contraste entre a percepção subjectiva e a percepção objectiva”, embora opte por fazer com que o autor tome parte daquilo que descreve, mas sem necessariamente inseri-lo no poema, o que diferencia a posição de Cesário da posição romântica de diversos autores, atingindo a literatura realista. Suas impressões e valores interferem em sua obra de um modo distinto do que era empregado na poesia daquele período, embasada nas teorias europeias científicas e literárias. Conforme explica Leyla Perrone-Moisés, “Cesário não ‘explora’ a cidade, ele a ‘sente’, incluído na coletividade, sem os privilégios de um observador aristocrata e maldito”. Ou seja, Cesário se coloca na posição do coletivo, apontando situações as quais irá descrever e julgar segundo os valores também coletivos, primeiramente do povo campestre, porém abandonando este pressuposto, como veremos adiante.


Interessante notar que Cesário não se utiliza neste poema da técnica de montagem, muito usual em seus textos que descrevem imagens que ele vislumbra em seus passeios pela cidade e pelo campo. Talvez, justamente por este poema ter como origem a história de um rapaz, que fora conhecido do narrador, e o soneto descrever a relação daquele com uma mulher, e não o cenário de um passeio pela cidade ou pelo campo, não se tenha sido conveniente aplicar tal técnica, pois o que se narra não são paisagens ou ações, mas sim uma história. O assíndeto é usado nestes versos (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de remendos, picaresca”), em frequência muito menor do que é geralmente utilizado em outros poemas, principal figura de estilo de Cesário Verde, segundo Helder Macedo, também por estar ligada à técnica de montagem.
De acordo com Leyla Perrone, “As metáfora e alegorias de Baudelaire tendem sempre a uma elevação ao plano metafísico, enquanto as imagens de Cesário nascem e permanecem no plano da realidade concreta”. De fato, encontramos nos poemas de Cesário metáforas construídas por imagens concretas, e não metafísicas, que se relacionam de modo a não causar uma tensão entre elas que fuja da realidade concreta. Em “Manias”, vemos o verso “Na sugestão canina mais submissa”, ou seja, imagens concretas e ligadas a situação real, e não metafísica.
A princípio, Cesário defendia os valores campestres em detrimento aos valores da cidade, corrompidos pela nova burguesia que estava se formando. Porém, tal atitude por muitas vezes lhe colocava numa situação crítica de consciência, já que ele próprio era dono de terras e possuía empregados, o que impossibilitava a aproximação de seus valores e sua realidade aos deles. Por fim, segundo Macedo, “esta revisão da imagem arcádica que servira de crítica à cidade forçou Cesário a abandonar a polaridade de atitudes expressas pela cidade e pelo campo como significantes e a deduzir dessas realidades antitéticas as injustiças comuns a ambas e, por extensão, às nações industriais do Norte e às nações agrárias do Sul”. Se “Manias” tivesse sido escrito tempos depois, provavelmente sua história poderia ser retratada tanto na cidade como no campo. Mas, ainda assim, Cesário enxergaria os vícios da mulher e a submissão do homem partindo de valores coletivos, e não subjetivos, enquanto envolve a realidade descrita com as personagens envolvidas nas cenas que, por tantas vezes, vão se desdobrando aos olhos do leitor como uma pintura realista.