domingo, 28 de fevereiro de 2010

A modernidade de Baudelaire

Por André Dick

Em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, em que se dedica a estudar o caso de Constantin Guys, Baudelaire, com base nesse conceito atemporal, escreveu que a modernidade é “o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte, cuja metade restante é eterna e imutável”. A proposição do poeta francês é pertinente para retomar o próprio conceito original de modernidade. Como afirma o filósofo alemão Jürgen Habermas, a proposição de Baudelaire institui uma “intersecção do eixo entre atualidade e eternidade", ou seja, a modernidade representa uma “atualidade que se consome a si mesma”. Nesse sentido, o presente não pode ser mais visto como a consciência de algo simplesmente oposto à “época rejeitada e ultrapassada, a uma figura de passado”, mas sim como a representação de uma atualidade capaz de ser o ponto de ligação entre o tempo e a eternidade. Baudelaire percebe, assim, que a modernidade não se distancia do seu “caráter precário”, mas sim de sua “trivialidade”, desejando que o “momento transitório seja reconhecido como o passado autêntico de um presente futuro”. A modernidade torna-se o que um dia será clássico, sendo este, doravante, o “‘clarão’ da aurora de um novo mundo, que decerto não terá permanência, mas, ao contrário, sua primeira entrada em cena selará também a sua destruição”. Dá-se, então, a ligação entre modernidade e a moda, pois o “novo” em Baudelaire não presta nenhuma “contribuição ao progresso” (que ele ligará ao conceito de decadência). Como lembra Benjamin, o poeta francês “faz aparecer o novo no sempre igual e o sempre igual no novo”.


Para Hugo Friedrich, em Estrutura da lírica moderna, na poesia de Charles Baudelaire se compõe o começo da “despersonalização da lírica, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos”. Tal separação se origina de “A filosofia da composição”, e foi Poe, como lembra Friedrich, quem separou a lírica do coração, com o poeta se libertando da paixão, a fim de se refugiar num mundo dito fantasioso. O contato que o autor de Les fleurs du mal teve com o autor tão importante para a teoria simbolista é relembrado pelo crítico Edmund Wilson, em O castelo de Axel:

Quando Baudelaire, um romântico tardio, leu pela primeira vez Poe, em 1847, ‘experimentou estranha comoção’. Quando se pôs a procurar escritos de Poe nos arquivos de periódicos norte-americanos, encontrou entre eles contos e poemas que ele próprio já havia ‘pensado vaga e confusamente’ em escrever, e seu interesse converteu-se em verdadeira paixão. Em 1852, Baudelaire publicou um volume de traduções de contos de Poe, e, a partir de então, a influência de Poe desempenhou papel importante na literatura francesa. Os textos críticos de Poe se constituíram nas primeiras escrituras do movimento simbolista, pois ele havia formulado o que equivalia a um novo programa literário, que corrigia a frouxidão romântica e desbastava a extravagância romântico, ao mesmo tempo em que visava não a efeitos naturalistas, mas ultrarromânticos.

A escolha de Baudelaire por Poe conduz ao que Valéry chamaria de “troca de valores”, ou seja, cada um acrescentou ao outro muitos elementos de análise. Poe, no caso, entregou a Baudelaire “um sistema de pensamentos novos e profundos”. Desse modo, Baudelaire, seguindo o caminho indicado pelo norte-americano, acabaria por justificar a poesia “em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal”. Friedrich entende, por outro lado, que quase todos os poemas que compõem Les fleurs du mal “falam a partir do eu”, já que Baudelaire é um “homem voltado para si mesmo”, não oferecendo espaço para seu “eu empírico”. É estranho, porém, considerando o que Friedrich dissera sobre o programa da poesia moderna, que um poeta como Baudelaire, o primeiro, segundo ele, a separar o coração da poesia, apresente traços considerados românticos como realizar quase todos os seus poemas a partir de uma visão que se quer impessoal, mas apresenta uma carga de observação individual significativa. Não o faz talvez por achar que os românticos, ao contrário dos modernos, entre os quais Baudelaire, não foram “obscuros”.
Essa é uma observação na mesma linha daquela adotada por Marcel Raymond, e não menos paradoxal, que afirma ser a poesia de Baudelaire “muito menos sentimental e muito mais claramente ‘psíquica’ do que a dos primeiros românticos, dirigindo-se menos ao ‘coração’ do que à ‘alma’ ou ao ‘eu profundo’”, tendo como objetivo “comover, mais além de nossa sensibilidade, regiões mais obscuras do espírito”.


Essa “obscuridade”, digamos, programada, mas realizada antes por um Imaginário do estado inconsciente, de alma torturada, ou, nas palavras de Raymond, pelo engajamento de um “doente”, por um desejo de “abordar em qualquer lugar fora do mundo”, desenvolvendo “o tema romântico da revolta e da evasão até o mais alto grau do trágico”, se dá justamente porque, dos poetas modernos anteriores a Mallarmé, o autor de Les fleurs du mal foi quem teve mais traços do romantismo, se for considerado que o abandono de Rimbaud a Deus foi um abandono solitário, sem a tentativa de configurar um movimento. Baudelaire, como os românticos, acreditava, no início, que a poesia serviria para fundamentar a sociedade. Em seu conhecido estudo sobre o poeta, Walter Benjamin assinala que ele “teve em mira leitores que se veem em dificuldades ante a leitura da poesia lírica”, à medida que ele “pretendia ser compreendido”, daí dedicar Les fleurs du mal “àqueles que lhe são semelhantes”. Baudelaire, no entanto, descartou a concepção do poeta como representante divino da humanidade, à medida que “alterou a noção romântica”, justamente porque sabia, ao contrário de seus antecessores, que a literatura, e sobretudo a poesia, só poderia redundar no fracasso. Nesse sentido, escreve Maurice Blanchot:

A vida de Baudelaire, como ele o prova, é apenas a história de seu fracasso. E, no entanto, essa vida também é um sucesso absoluto. Sucesso não fortuito, mas premeditado, e que não se acrescenta ao fracasso, e sim encontra sua razão de ser nesse fracasso, glorifica esse fracasso, torna incrivelmente fecunda a impotência, tira a verdade mais resplandecente de uma impostura fundamental.

A visão baudelairiana da modernidade como “ruínas”, além de constituir um ponto de referência para Walter Benjamin, que, a fim de estudar os românticos, compôs sua visão moderna a partir dessa imagem de desintegração, revela uma ligação com a “estética do feio” e uma busca por uma nova beleza, que o poeta dirá passageira, própria do próprio caráter de modernidade. Isso aponta que seu interesse era poetizar independente de um sentimento herético, pois, se a sua transcendência vazia ignorava o “sublime”, o sentimento de elevação, era porque tinha consciência da impossibilidade de mudar o caos da cidade à sua volta, e cuja sobrevida era o vazio de qualquer conceito de infinito. Tal movimento, antes de se aliar a um programa romântico, aponta para a falta de necessidade de escolhas num universo melancólico.
Para Friedrich, equivocadamente, “o desconcertante de tal modernidade” constituída por Baudelaire “é que está atormentada até à neurose pelo impulso de fugir do real, mas se sente impotente para crer ou criar uma transcendência de conteúdo definido, dotada de sentido”. Nesse ponto, Friedrich, como Raymond, afirma que suas Les fleurs du mal mostram uma “lírica obscura”, mostrando “estados de consciência anormais”, com “mistérios e dissonâncias” se expressando em versos compreensíveis, mas cujas ideias só se realizarão em poetas precursores, o que já alertava também Raymond, quando diz que nessa poesia não existe uma realidade por si mesma, mas um “imenso reservatório de analogias”, simplificando não só a interpretação da obra baudelairiana, mas a própria modernidade.


O leitor é levado a pensar que essas ideias surgem do fato de Baudelaire ter um “asco pelo real”, projetando no sonho e nas drogas um escape dessa realidade artificial que o incomodava (muito em razão, diga-se en passant, de seu livro Les paradise artificiels, em que revela as influências que tiveram o ópio e o haxixe em sua produção inventiva) decompondo e deformando paisagens, e que Rimbaud e Mallarmé, ao enfrentarem essa realidade, mesmo querendo aparentemente destruí-la, foram mais efetivos na realização, o que é uma interpretação talvez apressada. Baudelaire, no entanto, se afirmou como a figura do poeta maudit, que se cabia em Rimbaud, não era bem vista por Mallarmé, um homem socialmente mais discreto, senão nulo nesse sentido. Por sua vez, Octavio Paz, em Signos em rotação, escreveu que os poetas modernos ficariam, muito em razão de Baudelaire, conhecidos por sua vida fútil, perdida em meio a uma vasta desocupação, como poetas malditos, aqueles que escolhem a vida sem trabalho para produzirem mais. Sua ligação com as drogas era sobretudo mística e sua visão sobre a metrópole mostrava o olhar fragmentado do homem moderno. Mas não era um poeta irracional ou obscuro por tais escolhas.
Blanchot observa que

A imaginação baudelairiana é uma força muito complexa, essencialmente destinada a ultrapassar o que é, a esboçar um movimento infinito e, ao mesmo tempo, capaz de retornar a uma realidade ordenada, a da linguagem, em que ela representa e encarna esse movimento.

Ainda para Blanchot, Baudelaire também sabia que a poesia é “uma experiência vivida pela existência e pela linguagem, experiência que tende a criar o sentido de todas as coisas juntas, de maneira que, a partir desse sentido, cada coisa é mudada, aparece tal como ela é, em sua realidade própria e na realidade do conjunto”. No mesmo caminho, aponta Benjamin que “a rigor, não pode haver análise penetrante de Baudelaire que não se confronte com a imagem de sua vida”, cujo maior confronto se dá com a sociedade burguesa.


O filósofo italiano Giorgio Agamben, na seção “No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria”, de Estâncias, em que é traçada uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria, parte exatamente da interpretação de Freud sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas, “como presença de uma ausência”, é, ao mesmo tempo, “imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente”. O valor de uso não é maior, hoje, do que o valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria: a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie de mistura, em que as duas se anulam.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire está no fato de ele ter conseguido transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da ideia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, Baudelaire “não se limitou a reproduzir na obra de arte a censura entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a criar uma mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria realidade da mercadoria enquanto tal. Uma mercadoria em que valor de uso e valor de uso se anulariam mutuamente, e cujo valor residiria, por esse mesmo motivo, na inutilidade, e cujo uso, na sua intocabilidade, não é mais uma mercadoria: a mercadorização absoluta da obra de arte é também a abolição mais radical da mercadoria”.
Baudelaire acreditava que o poeta era um deslocado, mas, como reflete Blanchot, ele não tomava isso como “um ideal estético ou moral admirável”. A própria concepção do flâneur, do homem que transita solitário em meio à multidão de uma grande metrópole, sem perder sua privacidade, ajuda a compor melhor quem foi o poeta. Eis uma bela passagem de Benjamin sobre a relação de Baudelaire com a sociedade e que deveria ainda servir para situar o papel do poeta (e não do sociólogo disfarçado de poeta):

Com toda a certeza, não era [...] nenhum salvador, nenhum mártir, nem mesmo um herói. Porém tinha em si algo do ator que deve representar o papel do “poeta” diante de uma plateia e de uma sociedade que já não precisa do autêntico poeta e que só lhe dava, ainda, espaço como ator.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Referências de Paul Valéry em João Cabral de Melo Neto (I)

Por Nicole Cristofalo

Descubro que la poesía no me interesa sino como indagación de un pequeño problema cuya solución es bastante improbable:
Sintaxis x música x convenciones.
En lo demás -es decir, en lo que se refiere a la imaginación- la física y la matemática son mucho más estimulantes, ricas, etcétera.
En cuanto al sentimiento puro y simples, cada uno tiene el suyo.



Adotamos como ponto de partida este trecho do Cahiers de Paul Valéry, traduzido por Hugo Gola, onde são citadas algumas das principais características que estruturam sua construção poética. Falaremos dos traços mais importantes do poeta francês, para logo após os desenvolvermos e comparamos com as formas utilizadas por João Cabral de Melo Neto para a construção de seus textos.
A primeira característica mencionada no trecho inicial deste trabalho diz respeito à sintaxe, ou seja, à forma de estruturação do texto poético realizada por Valéry. Vamos procurar visualizá-la através da comparação entre a prosa e a poesia, citada pelo autor durante uma palestra, e publicada no Brasil com o título “Poesia e Pensamento Abstrato”. A prosa, para Valéry, tem somente a preocupação de descrever imagens banais, frívolas, atos práticos. Nela não acontece o trabalho de elaboração do texto, de seus termos e da “sintaxe”, servindo como um meio de comunicação utilitário. Por sua vez, no texto poético, as imagens são sugestionadas, preocupando-se não como mero meio de comunicação, mas de reflexão sobre sua construção, sua estrutura: “A poesia pura só chega à denotação depois de mil meandros conotativos, de mil associações de imagem e de som. Seu grande objetivo não é dizer, é dificultar o dizer”. Na palestra citada acima, Valéry compara a poesia e a prosa através do andar e da dança, demonstrando que o primeiro visa a um objeto preciso, pontual. Irá trabalhar para alcançá-lo, calcular o espaço entre seu corpo e o objeto, a velocidade e os meios do andar pensando apenas na finalidade prática de chegar até ele e alcançar o seu fim. Enquanto que a dança é, por si só, sua finalidade. Ou seja, o meio de executá-la, a “infinidade de criações e de variações ou configurações”, constitui o objeto a ser alcançado. Para Valéry, é da mesma maneira que se constrói o texto poético, onde não há finalidade prática, como na prosa, mas sim a preocupação com o desenvolvimento da estrutura do texto.


Dentro desta mesma palestra, o autor trata do “universo poético”, e o “universo musical”. Comentaremos este tema, e iniciaremos a análise da segunda característica mencionada na citação que abre nosso trabalho: a música.
Para o poeta francês, muitas vezes visto como pensador, a música é uma arte relacionada intensamente com a estrutura do texto poético, pois, em ambos os casos, utilizamos da sonoridade, do ritmo, da harmonia. Porém, não o conseguimos com tanto sucesso no poema, pois, como diz Valéry, “o universo poético não é tão forte e facilmente criado. Afinal, seus instrumentos são diferentes. Cabe à linguagem, nossos termos, seus sons e significado, e neste caso, nenhum físico determinou as relações entre esses elementos; nenhum diapasão, nenhum metrônomo, nenhum construtor de escala e teóricos da harmonia. Mas, ao contrário, as flutuações fonéticas e semânticas do vocabulário. Nada puro; mas sim uma mistura de excitações auditivas e psíquicas perfeitamente incoerentes. Cada palavra é uma montagem instantânea de um som e de um sentido, sem qualquer relação entre eles. Cada frase é um ato tão complexo que ninguém, creio eu, pôde até agora dar um definição sustentável”. Contudo, para ele o trabalho do poeta é ainda mais intenso, pois, além de se preocupar com a harmonia, o período musical, a sonoridade, também há o significado que o leitor irá tomar para si do texto, de suas imagens e termos utilizados, além da preocupação com as “regras convencionais” que aos leitores implicam. Desta forma, iniciamos a análise da terceira característica inserida na citação inicial: as convenções.


Quando foi publicado “Le Cimetiére Marin”, sabemos que havia três versões do mesmo poema já escritas. Do texto “Ébauche d’un Serpent” foram publicadas, pelo menos, duas versões. Mas por que o trabalho de se construir e reconstruir seus textos? Além da métrica e sonoridade, há a preocupação com a elaboração de imagens e associações de termos e os diversos significados que os leitores podem atribuir a eles, por conta de convenções já estabelecidas entre tais imagens e termos e seus significados. Ou seja, as convenções partem de experiências e memórias do leitor, e de tudo o que pode influenciar nas definições de significados que este pode atribuir ao texto.
Valéry também cita a Física e a Matemática como sendo mais estimulantes e ricas do que nossa imaginação. Podemos relembrar a afirmação de seu “mestre”, Stéphane Mallarmé, de que a poesia não é feita de ideias, mas de palavras, e analisar esta afirmativa tendo em mente a busca de seu discípulo pela “poesia pura”, liberta de emoções e construída não com a chamada “inspiração”, mas sim com o rigor das duas ciências exatas mencionadas. O autor deve se deter na estrutura do texto poético, elaborando desde sua métrica e rima (segundo Augusto de Campos: “Pierre Guiraud, comparando o uso da rima entre os poetas Du Bellay, Ronsard, Racine, Lamartine, Musset, Vigny, Hugo, Verlaine e Valéry, demonstrou que, de todos, é Valéry o que apresenta o maior índice de rimas ricas, sobressaindo 'Le Cimetière Marin' e 'Ébauche d’un Serpent' como os poemas mais típicos dessa prática”), até termos e imagens criadas, e os sentidos que a elas poderiam ser atribuídos. Valéry trabalha com a amplitude de significado dentro de cada termo cuidadosamente empregado nos seus textos, multiplicando-se as possibilidades de interpretação. Tal característica do poeta corresponde, em grande parte, à influência da escola simbolista francesa, pois ambos buscam por imagens onde o objeto referido não é simplesmente descrito, mas apontado através de sugestões vagas, aparentemente indefinidas.


En cuanto al sentimiento puro y simples, cada uno tiene el suyo.

A última característica mencionada na afirmação de Valéry é o sentimento como instrumento de criação poética. Um texto não se constrói a partir de emoções, de sentimentos particulares ou, como o autor afirma, “Não se faz bons versos com bons sentimentos”. Durante o processo da escrita o instrumento utilizado deve ser o intelecto, a razão atribuída às ciências exatas, o distanciamento. Mas não apenas isto. Valéry busca não construir um texto com impressões subjetivas em relação a uma imagem por estar imersa em sentimento. Elas, muitas vezes, compõem os textos poéticos, atitude criticada em diversos ensaios do poeta francês. Deve-se, sim, subordinar suas impressões particulares à estrutura racional do texto poético. Lembremos que “Le Cimetière Marin” é construído através de sugestões imagéticas que o poeta passa ao leitor muitas vezes construídas a partir de sua reflexão íntima. Porém, trabalhadas pelo poeta para que seu resultado esteja além de uma mera confissão.
Referências de Paul Valéry em João Cabral de Melo Neto (II)

Por Nicole Cristofalo

Analisadas algumas das principais características relacionadas ao processo de construção do texto poético de Paul Valéry, procuraremos desenvolver aquelas nas quais João Cabral se “debruça” e utiliza para a sua própria poética.

João Cabral estudou o poeta francês e não nega a admiração que sustenta por ele. Assim como Valéry, o poeta pernambucano não utilizava como “matéria-prima” sentimentos e emoções para construir seus textos. Segundo ele: “O interesse do poeta não é descrever suas emoções e criar emoções, é criar um objeto – se é poeta, um poema; se é pintor, um quadro – que provoque emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra emoção é exatamente neste sentido: o de usar a minha emoção para fazer com ela uma obra, descrevê-la primariamente e construir, com ela, um poema”.


Se Valéry encontra na Matemática a estrutura para seus textos poéticos, com João Cabral não será indiferente. Vejamos o seguinte trecho retirado do livro Dialogramas concretos , de Helton Gonçalves de Souza: “Se, em Quaderna, pudemos surpreender um princípio de radiação, obtido pela anomalia e – resultante – dinamismo em espiral, tendente a geometria espacial, nessa obra anterior, Paisagens Com Figuras, um outro ‘cálculo em formação’ se operacionaliza, mas dentro de uma similar ‘teia de referências’ internas na obra de JCMN”. Segundo o autor, ocorre uma anomalia de assimetria quando se cruza o nono poema do livro, “Encontro com um poeta”, construído com 48 versos, e o seguinte “Cemitério Pernambucano (São Lourenço da Mata)”. Porém, “se ao primeiro poema subdividimos em quartetos (doze ao todo) e os multiplicamos pelo número de versos do poema seguinte, obtemos o mesmo par simétrico constituído pelo numeral 192, conforme assinalamos no esquema geral do livro”.
O poeta pernambucano diz que os seus livros já estavam estruturados em sua mente, antes de começar a escrevê-los. Propunha-se números de versos, estrofes, tipo de métrica e rimas, como um desafio para o processo de escrita, e a construía a partir disso. Ou seja, podemos dizer que, para ambos os autores, é o processo de construção que lhes motiva a escrever, suas regras de criação, ficando o conteúdo subordinado à estrutura do texto. No livro Museu de Tudo, João Cabral fará referência a um dos principais personagens criados pelo seu mestre. Em busca da “comédia intelectual”, Valéry descreve ações de Monsieur Teste, que marcam seu distanciamento e introspecção (não costumava desejar bons dias, ou mesmo notar a presença de sua esposa), e seu rigor intelectual. Ou, como João Cabral descreve:

A Insônia de Monsieur Teste

Uma lucidez que tudo via,
como se à luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dente
de uma luz ardida, sem pele,
extrema, e que de nada serve:
porém luz de uma tal lucidez
que mente que tudo podeis.


Interessante observar que o autor se utiliza de rimas raras para construir o texto, no qual podemos perceber que a referência a Monsieur Teste se reflete tanto em seu conteúdo como em sua forma.


Num dos poemas de Agrestes, publicado mais de uma década depois de Museu de Tudo, o autor retoma a menção ao método da construção poética de Valéry:

Debruçado Sobre os Cadernos de Paul Valéry

Quem que poderia a coragem
de viver em frente da imagem

do que faz, enquanto se faz,
antes da forma, que a refaz?

Assistir nosso pensamento
a nossos olhos se fazendo,

assistir ao sujo e ao difuso
com que se faz, e é reto e é curvo.

Só sei de alguém que tenho tido
a coragem de se ter visto

nesse momento em que só poucos
são capazes de ver-se, loucos

de tudo o que pode a linguagem:
Valéry – que em sua obra, à margem,

revela os tortuosos caminhos
que, partindo do mais mesquinho,

vão dar ao perfeito cristal
que ele executou sem rival.

Sem nenhum medo, deu-se ao luxo
de mostrar que o fazer é sujo.


Nos quatro primeiros versos, João Cabral descreve o trabalho reflexivo do poeta francês, durante o processo de escrita: “Quem que poderia a coragem / de viver em frente da imagem / do que faz, enquanto se faz”. E ainda que tenha em mente tal imagem “do que faz”, a forma prevalece, refazendo-a “antes da forma, que a refaz?” Enquanto que, nos dois seguintes versos, será descrito o trabalho autorreflexivo, frente ao ato de escrever: “Assistir nosso pensamento / a nossos olhos se fazendo”, denominando-o louco por conseguir medir “tudo o que pode a linguagem”.

De versos conhecidos por “secos”, João Cabral se diferença de Valéry por adotar uma forma direta de se referir ao objeto mencionado, enquanto o segundo se utiliza de “tortuosos caminhos”, referências vagas em suas imagens, para sugerir tal objeto. No poema já citado “Cemitério Pernambucano (São Lourenço da Mata)”, são nítidas tais formas distintas de ambos os poetas estruturarem seus textos, quando comparamos este poema com o texto ao qual faz referência: “O Cemitério Marinho”.

Cemitério Pernambucano (São Lourenço da Mata)

É cemitério marinho
mas marinho de outro mar.
Foi aberto para os mortos
que afoga o carnaval.

As covas no chão parecem
as ondas de qualquer mar,
mesmo os de cana, lá fora,
lambendo os muros de cal.

Pois que os carneiros da terra
parecem ondas de mar,
não levam nomes: uma onda
onde se viu batizar?

Também marinho: porque
as caídas cruzes que há
são menos cruzes que mastros
quando a meio naufragar.

Enquanto “O Cemitério Marinho” é construído por metáforas que geram tensão maior entre o objeto referido e a imagem descrita, no “Cemitério Pernambucano” de João Cabral tais imagens se aproximam mais do objeto tratado, diminuindo as possibilidades de interpretações, mas apontando os possíveis significados ao leitor que o lê, de maneira ainda mais intensa. Afinal, é difícil escapar ao leitor a imagem dos mortos, que outrora trabalhavam nos canaviais, e agora se estendem pelo chão em covas rasas que formam ondas de terra pelo chão, e nunca foram tocadas (batizadas), pela água.
Interessante lembrar que a música também era uma característica que diferenciava os dois autores. Enquanto Valéry a tinha como uma arte próxima da poesia, como foi mencionado no início deste trabalho, João Cabral declara que nunca gostou de ouvi-la, e muito menos de estudá-la. Portanto, não a relaciona dentro de seu processo criativo.


Paul Valéry morre no ano em que João Cabral publica O Engenheiro, em 1945. Neste momento, enquanto o primeiro lega para a tradição da poesia francesa sua obra que definiria novas teorias sobre o processo de criação poética, e poemas como “O Cemitério Marinho”, e “A Jovem Parca”, que serão sempre citados e retomados pelos estudiosos posteriores, João Cabral ainda está no início de suas publicações, traçando, como um engenheiro, estruturas sólidas o bastante para que suportem e sustentem o conteúdo de seus textos, e que sejam, por si mesmas, obras de arte. Refletindo o desafio contido na construção poética, que o incita a escrever. Tal como o seu mestre.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O silêncio explosivo de Rimbaud

Por André Dick

O poeta Jean-Nicolas Arthur Rimbaud se inseriu na tradição não por opção, não por ser um modelo de caminho a ser seguido, mas pela própria negação a tudo. Isso é claro não só através de sua obra, mas por sua importância mais de um século depois de sua morte. Rimbaud, para muitos, morreu em vida, por “livre e espontânea vontade”, como escreve Leyla Perrone-Moisés, deixando a poesia logo no início da adolescência, mas pode-se dizer que, com isso, soube ir além, aonde nenhum poeta ousou.
Um dos pontos mais altos da poesia francesa do século XIX se encontra, afinal, em sua obra – certamente ao lado de Charles Baudelaire, com suas “flores do mal” e Stéphane Mallarmé, com seu “lance de dados”. Para nós, brasileiros, a obra de Rimbaud é infelizmente pouco conhecida, muito em razão de o Simbolismo, do qual Rimbaud foi o principal precursor, nunca tenha recebido um grande espaço em nossa literatura. Alguns de nossos grandes simbolistas foram, afinal, os catarinenses Cruz e Sousa, Ernani Rosas e Emiliano Perneta (os dois últimos menos conhecidos), o baiano Pedro Kilkerry e o mineiro Alphonsus de Guimaraens, o mais popular dos citados – seu poema “Ismália” está em muitos livros escolares. No Rio Grande do Sul, três representantes: Alceu Wamosy, Eduardo Guimarães e Marcelo Gama.


Fragmentos de vida

Rimbaud nasceu em em Charleville, cidadezinha do interior da França, em l854, longe das grandes metrópoles, dos grandes meios de circulação da cultura (que, para Rimbaud, ficava em qualquer lugar, menos em Charleville) e da África, para onde partiu mais tarde, deixando a poesia em último plano.
Em sua juventude, sua rebeldia e seu ímpeto de liberdade já chamavam atenção, sobretudo no colégio, onde costumava impressionar seus professores com poemas em latim, pelos quais ficaria conhecido inicialmente. Entre fugas de Charleville, pedidos de publicação de alguns poemas seus ao inspirador Theodore Banville e versos, muitos versos, desde os dez anos de idade, Rimbaud foi amadurecendo. Em l869, ele iniciaria sua obra, com “As dádivas dos órfãos”, que seria publicado na Revue Pour Tous, em janeiro de l870, poema longo e, por vezes, piegas.
A convite do poeta Paul Verlaine, para quem havia mandado alguns versos, foi morar na capital da vanguarda literária, Paris, em l87l, levando, embaixo do braço, o poema pelo qual mais ficaria conhecido, o antológico “O barco ébrio” (que foi muito bem traduzido por Augusto Meyer e Augusto de Campos), composto quando tinha em torno de 15, 16 anos. Na Paris dos poetas e outros artistas mais avançados no tempo, cercou-se de personalidades literárias e se iniciou na droga predileta daquele período: o haxixe, atrás do “desregramento dos sentidos”.
Seu melhor amigo em Paris, neste período, foi justamente Paul Verlaine, companheiro de poesia e diversão. Rimbaud, afinal, se hospedou na casa dos sogros de Verlaine. A dupla compunha o “Círculo Zútico”, um clube de artistas, sobretudo poetas, cuja maior diversão era passar as noites fazendo festa entre bons e maus versos, aplausos e vaias.
Foi nessa amizade também, entre Rimbaud e Verlaine, que cresceu um envolvimento perigoso, pois o segundo era casado, arranjando problemas com a esposa ao circular com Rimbaud pela noite parisiense. Essa relação problemática acabou rendendo também ao poeta idas e vindas no trajeto Charleville-Paris. Numa dessas idas a Paris, em l873, Rimbaud tomou um tiro de Verlaine que quase o fez perder a utilidade da mão esquerda. O caso chegou a parar na polícia. Mas a trajetória de Rimbaud não ficou só nisso: ele viveu aventuras em países como Bélgica (aonde fora com Verlaine), Inglaterra (onde teve uma vida miserável em Londres), Alemanha (onde virou preceptor dos filhos de um médico em Stuttgart), Itália (de onde foi expulso) e Holanda (onde se engajou no exército), entre outros, nunca fixando lugar.
Disposto a fugir da Europa branca e aristocrática, e encontrar novos povos, novas culturas, um novo universo, enfim, Rimbaud tomou o caminho da África. A vida do poeta, então, traçou os contornos de uma jornada sem fim, mais do que já era, tão ou mais trepidante que sua prosa, registrada em Uma temporada no inferno e em Iluminações, constituindo-se em influência direta na obra de outros escritores modernos, sobretudo os beats americanos dos anos 60, que espalharam pelo mundo a cultura junkie. Na África, Rimbaud passou, entre outros lugares, por Chipre, Egito, Harar, Somália, Ugadine, Bubasse, Etiópia, tornando-se o primeiro homem a desbravar o rio Ugadine, o que lhe oportunizou realizar relatos de viagem, publicados pela revista Sociéte de Géographie. Nesse ambiente, Rimbaud foi o homem que traficou armas, exportou ouro, marfim, peles e café, participando da construção de um palácio e cruzando desertos. Só a travessia do deserto da Somália durou, a cavalo, vinte dias.
Em l879, ano em que contraiu febre tifoide, ele deu a seguinte declaração sobre a literatura e, especificamente, sobre a poesia, ao seu amigo inseparável Ernest Delahaye: “Já nem penso mais nisso”. Como se tudo que escrevera até então pertencesse ao acaso, relegando o passado e sua juventude apenas para os admiradores da poesia. Talvez Rimbaud, o simbolista francês por excelência, a peça-chave para compreender os passos de uma futura vanguarda, entre futurismos, vorticismos, dadaísmos e outros ismos, com coração de caçador, quisesse nos comunicar além da sua poesia, embora isto seja difícil, tal a amplitude que ela atingiu. Isto é, talvez Rimbaud tenha pretendido separar suas facetas, uma delas voltada para a vida literária e a outra para a terra estrangeira, quase inevitável em sua vida.
Quando Rimbaud, castigado por um tumor cancerígeno no joelho direito, agravado por uma antiga sífilis, teve a perna amputada num hospital de Marselha, a 22 de maio de 1891, após varar o deserto que separa os montes de Harar do porto de Zeilá e passar por Aden, percebemos que toda essa trajetória rumava a algum significado. O poeta faleceu no dia 10 de dezembro do mesmo ano. Seu último desejo (ser inumado em Aden, cidade que adorava) não foi atendido: por ironia do destino, a mãe resolveu enterrá-lo em sua cidade natal, de onde fugiu a vida toda. Assistiram sozinhas ao seu enterro a mãe e a irmã.


Fragmentos de poesia

O poeta Paul Verlaine observa que na poesia de Rimbaud “a língua é clara e se mantém límpida mesmo quando a ideia turva sua dicção”. As cores concretas de sua poesia são visíveis em poemas como “No cabaré verde”, “Minha boêmia (Fantasia)”, “Romance” e “Sensação”. Neles, o poeta lida com a descrição de lugares e a expressão de sentimentos diante de um mundo que se abre, dando a nítida sensação de que alimentava sua subjetividade por meio de jornadas exteriores.
Outros poemas seus seguem caminhos diferentes, embora todos tenham as características da poesia simbolista, como a musicalidade, a introspeção, na tentativa de desvendar a alma (ou, seguindo Lacan, o inconsciente)seja da palavra, seja do poeta, a julgar, de modo mais acentuado, pelos poemas “Vogais” – cuja estrutura simbolista, baseada, obviamente, nas vogais, é universal e complexa –, e “A estrela chorou rosa” - com sua quadra antológica.
“Canção da mais alta torre” – onde estão os versos da vida de Rimbaud: “por delicadeza / perdi a minha vida” –, “A eternidade” – que trabalha com as nuances que se abrigam na alma humana –, “O riacho de Cassis” – um dos mais belos e menosprezados poemas de Rimbaud – e o excepcional “Memória”, composto de imagens oníricas e, apoiado em sua fragmentação, extremamente interessante, fazem parte de um período em que o poeta queria fazer poemas com um ritmo mais leve, quase de cancioneiro, embora todos sejam extremamente concisos e relevantes dentro de qualquer antologia de poesia universal.
Há outros poemas brilhantes de Rimbaud que merecem ser destacados, tais como ”Miguel e Cristina” – uma observação compenetrada de imagens em rotação –, “As primeiras comunhões” – com pequenas tomadas da infância –, “Lágrima” – com influência direta de Catulo – e “A música” – hino de repúdio à moralidade de sua cidadezinha natal, entre muitos outros que entrariam em qualquer seleção mais abrangente.
Tal gama de temáticas faz com que não faltem definições e elogios a Rimbaud. O poeta Paul Claudel o denominava “místico em estado selvagem”, enquanto, para o poeta norte-americano Ezra Pound, a poesia não evoluiu nada depois de sua passagem, assinalando, em sua obra, alguns elementos da poesia latina de Catulo, sobretudo na clareza e objetividade. Décio Pignatari, um dos patriarcas da poesia concreta, o considera o “demoníaco anjo loiro da poesia ocidental”, muito em razão de o poeta francês ter guardado uma certa atração por anjos, que, inclusive, aparecem em alguns de seus poemas.


Para se ter uma ideia de como se buscaram e se buscam definições para o poeta de Charleville – entre os quais interiorano e provinciano –, o próprio Rimbaud se considerava um “vidente”. O poeta, tradutor e crítico literário Augusto de Campos, em Rimbaud livre, que traz excepcionais traduções de poemas referenciais de Rimbaud, busca definir o poeta francês numa comparação com Stephane Mallarmé, outro poeta do simbolismo francês. Rimbaud, sob a ótica de Augusto, seria explosivo; Mallarmé, implosivo. Comparado a Mallarmé, certamente Rimbaud foi mais explosivo. Explosivo não só em se tratando de imagens poéticas (basta ler seu poema de l00 versos, "O barco ébrio"). Explosivo em se tratando de viagens, internas (sem fazer aqui uma menção ao uso de haxixe ou outras drogas, como o faz Charles Baudelaire, também simbolista nessa fauna de símbolos em que se constituía a poesia francesa) e externas, no que se refere às peregrinações, aos desbravamentos, ao tempo passado em estradas, ao desolamento introspectivo, aos escritos repassados em estradas desertas.
Talvez em razão disso tudo, Rimbaud continue sendo um enigma – o buraco negro – tão grande ou maior em relação à poesia, para o crítico literário americano Harold Bloom, em seu O cânone ocidental, famoso por seu desprendimento da poesia francesa. Quem disser conhecer a poesia contemporânea, precisa ter lido Rimbaud.
Sua poesia, sóbria, mas num ritmo flutuante, de ondas que batem com violência. no convés de um navio – um barco ébrio –, estruturada em tessituras sonoras, aliterações e musicalidade do inconsciente, representa parte do pensamento moderno que só viria a se refletir com mais vigor na poesia em meados dos anos 50, numa certa poesia da indeterminação, visualizada por Marjorie Perloff, numa trajetória Rimbaud-Cage, em The poetics of indeterminacy. Desse modo, Rimbaud é um poeta atemporal, em sua explosão de personalidades e cores. Sua obra pode ser lida tranquilamente pelo leitor atual, uma vez que sua linguagem tem como pano de fundo a linguagem, não uma porção de sentimentos dispersos.


São poucos os que conseguiram inscrever uma obra literária entre as maiores da história, produzindo, basicamente, dos l6 aos l9 anos. Só isso já bastaria para colocá-lo no patamar mais elevado da “poésie”. Como lembra Leyla Perrone, Jean-Pierre Michard, crítico francês, analisa que o silêncio rimbaudiano é “um malogro do projeto paradoxal de construir destruindo; Rimbaud não teria, afinal, encontrado a linguagem total e instantânea que buscava”. “Eu é um outro”, disse Rimbaud de si mesmo. O mastro para a virada de conceito em relação ao papel do autor. Quando não se é si mesmo, permanece o incosciente: surgem os heterônimos de Pessoa, a constelação de Mallarmé às portas do século do cinema, o silêncio contrário (implosivo) de Paul Celan, as conferências sobre o nada de Cage, o livro objetual de Edmond Jabès etc. Talvez tudo seja silêncio. Mas jamais teremos outro Rimbaud, este capaz do silêncio explosivo.

Romance

I

- Não se pode ser sério com 17 anos
Um belo dia, adeus chope adeus limonada,
De todos os cafés cheios de suburbanos!
- e se vai sob as verdes tílias da estrada.

As tílias são boas como as tardes!
O ar é puro e doce, a pálpebra arqueja;
O vento carregado de barulhos – se vê a cidade, -
Com perfumes de vinho e de cereja...

II

- Eis que se percebe uma pequena tira
De azul escuro, em meio a um pequeno ramo,
Picotada por uma estrela má, que aspira
Um doce arrepio, pequeno e todo branco...

Noite de junho! 17 anos! – A gente fica tonto.
A seiva é do champanhe e subo ao seu seio...
A gente divaga; a gente se beija num beijo solto,
Que pousa ali, como um pequeno inseto alheio...

III

O coração Robinsona atravessa o romance,
- Quando, na claridade de um poste pálido,
Passa uma moça de relance,
Sob o ombro do pescoço de seu pai que assusta rápido...

E, como ela se descobre completamente à parte,
Fazendo trotar suas pequenas botinas,
Acaba se voltando, alerta, como em pura arte...
Sob seus lábios soluçam cavatinas...


IV

Você está apaixonado. Até o mês de agosto.
Você está apaixonado. De seus sonetos ela ri.
Os amigos se vão... é do tipo de mau gosto.
Que um dia ela escreva alguma coisa para ti...!

Nesse dia – você volta aos cafés suburbanos,
Regressa ao chope, à limonada...
- Não se pode ser sério aos 17 anos.
Quando a tília perfuma as aleias da estrada.

29 de setembro de 1870.

(Tradução de André Dick)